BIRICA e PANELÃO

BIRICA E PANELÃO

BETO MACHADO

Dois amigos verdadeiramente fraternos. Pelas idades e experiências dos meninos não podemos afirmar que eles tenham consciência da força desse tipo de relacionamento. Mas o instinto humano somado à boa índole de cada um os coloca na linha de frente do time AMIZADE SINCERA.

BIRICA é um menino, filho único, de classe média que foi empurrado, via decadência financeira da família, para a rede pública de ensino. Seu histórico escolar, apesar da pouca idade, é de causar inveja a muitos marmanjos. Sua estante de parede inteira, num quarto que guarda mais livros do que móveis e brinquedos, exibe certificados e troféus os mais variados. Os pais relutaram muito antes de abrirem mão do ensino em escola particular para o filho. Mas foi inevitável.

PANELÃO tem uma renqua de irmãos menores do que ele, que circulam e se alimentam pelas dependências das creches e das pré-escolas municipais, ao redor da comunidade onde moram. As crianças vivem num regime de intervigilância determinado não pela mãe, mas pelo primogênito, a quem cabe dar as ordens e cobrar as execuções, antes e depois do seu horário escolar. O pai desertou há mais de dois anos, após o nascimento do caçula. A mãe é o esteio para onde os fragmentos da família são magneticamente atraídos toda noite.

As quatro da matina, enquanto os pais de BIRICA dormem, a mãe de PANELÃO prepara a saída para a batalha diária. Antes de ir deixa o fogão e a geladeira a mercê das necessidades dos seus rebentos. Sai tranqüila porque sabe da autoridade do filho mais velho exercida sobre os irmãos. E mais que isso. Sabe da responsabilidade adquirida por ele, precocemente, por conseqüência da ausência paterna. A primeira luta enfrentada por ANA é na madrugada, dentro de Van, de trem e de metrô. Depois do exercício praticado no transporte público a super mãe ANA tira de letra as faxinas que faz nos lares bem afortunados a mais de quarenta quilômetros de distancia da sua comunidade carente, mas pacificada oficiosamente.

A escola onde estudam os dois amigos BIRICA e PANELÃO, constantemente, promove concursos pedagógicos que estimulam os alunos a manterem o foco tanto na competição quanto no interesse pelo assunto abordado. O último trabalho do ano letivo foi definido pela coordenação da escola como parte do exame final, com peso de vinte por cento do valor total da prova escrita de ciências. A SAÚDE BUCAL.

Ao ler no mural da escola o regulamento para o desenvolvimento do trabalho escolar PANELÃO se lembrou do dia que recebeu esse apelido. Havia uma campanha da Secretaria de Saúde visitando as escolas públicas, para erradicação da cárie infantil. Há uma espécie de pavor coletivo a pairar sobre a infância pobre quando o assunto é saúde bucal. Quando se fala em ir ao dentista é um Deus nos acuda!... Não houve choro, mas o remelexo na cadeira, sem que o dentista tivesse feito ainda qualquer intervenção na sua boca já fora o suficiente para platéia, seus coleguinhas de turma, se deliciar com “sofrimento” daquela vítima da falta de oportunidades, iguais as que recebeu a família de BIRICA... Não valeu a idéia de se colocar no final da fila. O medo reduz o poder do raciocínio... Fora da algazarra da turma zoando o colega, só BIRICA. Por sinal, o único que visitava regularmente o dentista do plano de saúde da família. Mesmo sendo um garoto astuto demorou certo tempo para entender porque os meninos gritavam:

--- Ele tem um panelão! Ele tem um panelão!

Certos apelidos pegam com uma facilidade incrível. O dentista, ao examinar a boca do último aluno, pensava lá com seus botões:

--- Mesmo depois de um bom tratamento esse aí não escapa mais do apelido.

O pensamento do profissional foi profético. Hoje os dentes do adolescente PANELÃO são limpos, livres de cárie e de uma reluzencia exemplar.

A classe escolar de BIRICA e PANELÃO definiu os grupos para a elaboração do trabalho. O número mínimo de membros era três, o máximo cinco. Os dois amigos escolheram as colegas DUDA e NARA para compor seu grupo. A escolha foi consensual, mas a iniciativa e a indicação foram de PANELÃO. As duas meninas aceitaram, prazerosamente, o convite.

Para DUDA, além da garantia de estar participando de um grupo produtivo, interessado na qualidade total da tarefa, era a grande chance de uma aproximação mais efetiva do colega BIRICA, a quem ela achava muito arredio a sua admiração escandalosamente explícita, porém, até àquele momento, insuficiente para uma possível correspondência.

NARA recebeu o convite com um misto de prazer e apreensão. Há quatro meses mantinha um relacionamento amoroso com um menino não aluno do colégio, após a ruptura de seu namoro com PANELÃO. Sua preocupação procedia. Seu namorado é ciumento e não tem o mínimo de pudor para demonstrar seu perfil de jovem violento e pegajoso.

A fase de adolescente dos seres humanos é caracterizada pela insaciável sede de aventura, da busca pelo novo, pelo desconhecido e pela competição. Esse período vivido pelos jovens nos leva a constatar que é aí o nascedouro da auto-afirmação. E, essa, quando não percebida ou mal trabalhada, leva os indivíduos a se emaranhar numa teia de conflitos tão evitáveis quanto perniciosos.

As reuniões para as pesquisas sobre SAÚDE BUCAL foram na casa de BIRICA, por conta de vários fatores: a receptividade demonstrada pela mãe dele, dona DORINHA, inclusive se colocando à disposição para ajudar nos trabalhos manuais como recortes e colação de cartolinas; o silêncio do ambiente, a disponibilidade de equipamentos, pois cada componente da família tem seu “lap top”, além do “desk top” na sala de estar. Dos quatro apenas PANELÃO não tem internet no celular, por motivos óbvios.

DUDA se encantou com a dona da casa. Na escola, tece os maiores elogios a respeito da mãe do seu pretendido há algum tempo. Ela e NARA trocam muita idéia nos intervalos de tempo vago.

---DUDA, não vai com muita sede ao pote não, menina.

---Esquenta não, NARA... Ce ta nessa de relax por causa da moral que o teu troglodita já botou em você.

---Ce que pensa. Vou aprontar uma com ele. Tu vai ver só.

---Cuidado, garota. Aquele moleque tem cara de psicopata... E atitudes também. Vê lá o que tu vai arrumar heim.

O sinal sonoro interrompe a conversa das amigas, e elas voltam para a sala de aula.

Uma semana se passa, o trabalho está impecavelmente pronto. O professor surge com uma novidade: a apresentação do trabalho deverá ter a participação de todos os componentes do grupo. As meninas vibraram mais uma vez. Assim sendo, eles deveriam ensaiar. Aonde? Na casa do BIRICA... Lanchinho com refri e torradinha à tarde... Só de pensar PANELÃO já fica com água na boca. Até dona DORINHA gostou da notícia. O comportamento daqueles meninos, colegas do seu filho, totalmente diferente do que ela observa na garotada, nas ruas, nos ambientes públicos e privados ampliou sua esperança de que esse país tem jeito.

No primeiro dia de ensaio os meninos se deparam com mais uma surpresa. DORINHA, se vendo na obrigação de contribuir mais efetivamente, comprou um “kit” de limpeza e escovação dental, sob a consultoria e recomendação de um estudante de odontologia, sobrinho da vizinha do lado. É evidente que ela só mostrou a sua colaboração depois do lanchinho. --- Olha aqui que eu comprei pra vocês... Nem o UBIRATAN sabia. Guardei essa surpresa para que o impacto gere o mesmo efeito em cada um dos quatro.

--- Muito maneiro, dona DORINHA. --- Antecipa-se DUDA.

--- Mas esse material é para ser usado antes, durante e depois da apresentação do trabalho.

--- Antes, mãe? --- Pergunta BIRICA estupefato.

--- Sim, filho. Tão importante quanto o nosso discurso deve ser a nossa prática. Ela edifica e ratifica a credibilidade. O texto e as imagens que compõem o belo trabalho de vocês são para agradar o professor e norteá-lo quanto à avaliação para definir a nota, mas o objetivo principal de um trabalho como este deve ir além das notas. --- vaticinou DORINHA.

--- Caraca, BIRICA, tua mãe é fera! --- Exclamou NARA.

--- O DNA do meu amigo tem a cor azul... Ta pensando o quê?! --- Brincou PANELÃO.

--- Agradeço os elogios, mas agora é hora de botar a mão na massa. Hora de transformar o discurso em ação positiva. Cada um de vocês deve escovar seus dentes, seguindo essas orientações aqui. --- DORINHA mostra um prospecto que veio no “kit”.

Encerrado o último ensaio, o dia seguinte é o foco. Dia da apresentação. Mas a adrenalina tem que ser controlada. DORINHA teve uma brilhante idéia: sugeriu ao filho que convidasse os colegas para saborearem uma pizza no andar térreo do seu prédio.

As meninas receberam o convite com os olhos reluzentes, espelhando a alegria de suas almas. PANELÃO lembrou-se de algumas tarefas a cumprir em casa. A tolerância de espera para a retirada das crianças da creche onde seu irmão caçula passa dois turnos, diariamente, é até as dezessete horas. Essa missão é, exclusivamente, dele. Os colegas entenderam o seu pedido de desculpas pela recusa do convite, por conta do justíssimo motivo.

Um observador mais atento à interação praticada entre aqueles jovens poderia imaginar que PANELÃO usara sua astúcia para se antecipar a uma possível investida de NARA, visto que já conhecia muito bem o grau da perspicácia da ex-namorada.

DUDA, finalmente conseguiu, com seu jogo de sedução, fazer com que BIRICA se deixasse fisgar não pela flecha de Cupido, mas pela flecha da oportunidade de se afirmar como integrante do time dos pegadores, expressão peculiar na linguagem utilizada por sua geração. A constatação disso faria muito bem ao ego de DORINHA, mãe zelosa, mas que ainda não havia notado, no seu “tesouro”, nenhum interesse em lhe apresentar uma namorada. DUDA, logo após a despedida de NARA, perguntou a BIRICA se ele poderia levá-la até a próxima esquina. O tiro foi certeiro. Pouco depois da metade do quarteirão da pizzaria já estavam abraçados e misturando línguas e salivas, num compartilhamento de amasso pra diretor de cinema nenhum botar defeito. Claro que fora dela a iniciativa. Seria sua cartada final; últimas fichas.

NARA e PANELÃO torciam por aquele acontecimento... Agora o grupo estava mais fortalecido. Mas força nunca é demais.

Sucesso retumbante foi a apresentação do trabalho. Com direito à exposição no hall de entrada da escola.

Mas surgiu um incidente constrangedor, na saída do colégio. O namorado de NARA foi buscá-la, sem comunicação prévia.

Os quatro componentes do grupo que teve o trabalho mais bem avaliado mal passaram pelo portão, abraçados, comemorando, saltitando, cantando e esbanjando felicidade, se deparam com o troglodita, namorado da NARA. O jovem expunha o semblante de um ser transtornado. Pôs-se diante da namorada como um pugilista põe-se diante de seu oponente, momentos antes da pesagem. O clima de alegria deu lugar ao suspense. A eloqüência do silencio foi se acentuando, como se alguém estivesse diminuindo, lentamente, o volume do som ambiente. NARA fita os olhos do namorado e não reconhece aquele brilho, nem o rosto diante de si. Parece uma máscara. Por conta dessa sensação ela se cala. O jovem entende que o silencio é o sinal para extravasar a sua fúria sobre quem ele imagina ser sua posse e ou sobre quem a tente subtrair. Mas sua intenção foi mal sucedida. Apenas dois passos deu, depois de agarrar e puxar bruscamente o braço de NARA.

PANELÃO lembrou-se dos conselhos do seu Mestre de Artes Marciais, que ministra aulas para a garotada da comunidade, na quadra poliesportiva:

--- “Lutar sempre para defender a si e os seus”.

A despeito da visível diferença de estatura e de idade o conhecimento técnico da arte do TAEKENDO adquirido por PANELÃO livrou sua colega de classe escolar e ex-namorada das mãos de alguém que não a merecia. Sua atitude foi motivo de orgulho para o Mestre JILÓ, professor de PANELÃO.

Desnecessário dizer que o episódio serviu para acelerar o reatamento das relações amorosas entre NARA e PANELÃO.

E, no último dia de aula, os quatro amigos foram comemorar na pizzaria que testemunhou o início do namoro de DUDA e BIRICA. Só que dessa vez foram eles que convidaram DORINHA, para o comunicado formal e a apresentação da sua primeira nora.

Roberto Candido Machado
Enviado por Roberto Candido Machado em 23/12/2014
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