A morte como ela é
Juro pelos meus testículos- ou pelo que de mais sagrado além deles existir- que o homem não tinha conhecimento do que sucedia com ele. Há muito tempo ele padecia daquele mal sem aperceber-se de sua situação. O nome do homem: Bento dos Santos (nome estrambótico, eu sei). Ex- lavador de pratos. Foi pedreiro também. Agora está desempregado perambulando pelas ruas atrás de trabalho. São nove horas da manhã. Bento vê um cartaz de "Contrata-se" numa loja de móveis antigos e entra.
- Com licença, ele diz, junto ao balcão, onde um senhor encarquilhado se encontra debruçado sobre um jornal,sentado. O homem não ergue os olhos, parecendo não ouvir. Bento agora diz, quase gritando:
- Com licença, senhor! Me interessei pela vaga.
O velho levanta os olhos e encara o homem diante dele. Bento percebe que o homem é cego de um olho e que lhe falta a orelha esquerda. O velho diz, um pouco surpreso, usando o tom de voz que as pessoas costumam usar quando têm uma notícia ruim para reportar:
- Lamento, mas não posso contratá-lo. Pausa. O velho encosta os olhos nor jornal. A seguir, encara Bento novamente,e diz: - Sem chance, rapaz, sem chance.
Estupefato, Bento interroga:
- Por quê?
Agora o velho assume uma expressão de extremo espanto, e inclusive deixa o jornal cair das mãos, tamanho foi o choque.
- Ora, como por quê? É nítido! Não posso contratá-lo porque o senhor está morto!!!
Ao ouvir isso, Bento sai da loja, lentamente, andando de costas até chegar a porta, daquele jeito que só se vê em filmes B de suspense.
- Este é um velho maluco! - ele exclama, alcançando a rua. Mas no fundo, receia que haja alguma verdade naquilo tudo. Havia algo de genuíno, que se assemelhava a ele próprio naquela figura octogenária, enrugada e mutilada.
O tempo está nublado e talvez chova. São muitas pessoas nas calçadas, todas esbarrando e se acotovelando umas nas outras, sem pedirem desculpas, sem olharem uma na cara dos outros. Bento pensa: "Há gente demais nesse planeta. Metade das pessoas deveria morrer e tudo correria melhor. Ninguém mais se respeita. Quando alguém espirra, não há mais quem deseje "Saúde!".... Sim.... E ninguém mais assovia nas ruas. Eis o sintoma do universo.
Estava tergiversando mentalmente nesse tema, quando viu um menino mendigando dinheiro numa esquina, sem sequer ter o olhar dos transeuntes.
Bento aproximou-se e ficou de cócoras, para nivelar-se ao moleque que estava sentado. Pronunciou paternalmente:
- Tenho dois reais em moedas. Posso lhe dar. Mas você vai usar o dinheiro para comprar comida, certo? Para a surpresa de Bento, o menino sujo deu uma gargalhada, dessas que as pessoas dão depois de ouvir uma boa anedota. Sua bocarra aberta revelou dentes podres e um hálito de rato morto.
- O que foi? Qual é a graça?! disse Bento, pondo-se em pé, irritado.
O pequeno pedinte parou de gargalhar, mas conservando ainda um sorriso zombeteiro no rosto craquento, disse, com sua vozinha:
- Como posso aceitar dinheiro de um homem que já morreu?
Bento encarou o garotinho com severidade e gritou uma coisa bastante grosseira sobre o orifício anal do menino. Atribuiu uma profissão desonrosa a mãe dele também. Após proferir essas bravatas de libertação, retirou-se. Que brincadeira era quela? Estava preocupado e confuso, e sentia medo. Decidiu ir na casa da ex-mulher. Há meses haviam se divorciado e desde então não se viram uma única vez. O antigo apartamento ficava próximo. Ele hesitou por um momento, pensando se era a coisa certa a ser feita. Não, não era. Mas ele foi, não porque fosse um idiota, apenas porque era um homem naturalmente propenso a tomar as escolhas erradas. Simples assim.
Apertou a campainha e Valdirene- nome de empregada doméstica, e de fato essa era a profissão dela, atendeu.
- Olá...- foi interrompido
- Ben, não sei o que tu queres. Mas seja como for, sabe que estamos irremediavelmente separados. Não insista.
- Por qual razão diz isso? Ao menos poderia me oferecer um café e conversar comigo...
Com os olhos úmidos e uma espécie de cólera compassiva na voz, Valdirene disse, berrando:
- Porque tenho de trabalhar e já estou atrasada! Respirou fundo, e continuou, agora chorando e pronunciando as palavras vagarosamente:
- E porque você morreu, Ben. Aceite isso.
Bateu a porta e Bento caiu fora. Descontrolado, falava sozinho na rua. Começou a chover, uma dessas finas chuvas chatas que, em geral, duram o dia todo. Bento Santos começou a sentir fome. Sentia vontade de beber também. Ia mesmo era comer e embebedar-se; depois, casa.
Entrou num bar fuleiro que oferecia almoço barato- prato feito- onde podia passar sem grandes despesas. O lugar estava às moscas.
Bento sentou numa mesa nos fundos. Um garçom jovem estava escorado no balcão. Ele olhou para o homem sentado na mesa. Estudou o sujeito por um momento e desviou o olhar. Bento achou isso ultrajante. Que falta de respeito com um freguês! Essa juventude... pensou, raivoso. Bateu duas palmas, levantou a mão. O garçom o viu e se aproximou.
- Bom dia, cavalheiro.
- Não sei o que há de bom hoje- Bento pigarreou. Andava mal do pulmão.- Por favor, jovem, traga-me o prato do dia, uma cerveja e um conhaque.
O garçom analisou o homem a sua frente. Então disse:
- Mas o senhor está morto. Porque deseja comer e beber?
Então aconteceu. Bento começou a chorar. Eles deviam ter razão. Num gesto de compaixão, o garçom sentou-se na mesa e consolou o homem, explicando:
- Sei que o senhor está morto porque também estou. Acho que o senhor deve procurar compreender.Somos muitos, nós, os que pensamos estar vivos enganadamente enquanto estamos mortos. Nós, nada faremos além de servir mesas, construir prédios luxuosos, limpar casas e cortar a grama dos vivos.Muitos de nossa raça, quando notam que nasceram mortos, vão para a rua e de lá não saem mais.
"Veja, o senhor mesmo quer beber e são ainda onze horas. Isto é o que fazemos, nós os homens mortos. Tentamos fingir que estamos vivos... Não, não é isso... Tentamos esquecer que estamos mortos.- Ele para de falar por um momento, toca a mão de Bento sobre a mesa a fim de confortá-lo e continua.
-Sim, é isso. Aceite, homem. E pare de chorar e ponha-se daqui para fora. Temos muita morte pela frente, não podemos desperdiçar nossa preciosa morte lamentando a vida que nos falta. Com licença.
Dito isso, levantou-se e desapareceu, perpassando uma dessas portas que abrem e fecham sozinhas, indo para a cozinha, conversar com o cozinheiro que também estava morto. Bento chorou mais um pouco e foi embora.
Em casa, ou melhor, no quarto que alugava, entendeu. Eram todos os que sabiam que ele estava morto, mortos também. Acendeu um cigarro e encheu um copo de conhaque ordinário e foi até a janela. Pensou em atirar-se. Era altura o suficiente para se tornar carne moída lá embaixo. Mas não fez isso porque já estava morto.Sorriu ao pensar nisso. Sorveu um gole generoso da forte bebida e deu uma tragada no cigarro.
- Viva a morte!, disse, ainda sorrindo.
E por um pequeno momento, enquanto sorria, pareceu muito diferente do que era, sem se dar conta:
Pareceu vivo.