O TICO-TICO INSATISFEITO

Aquele dia o Tico-Tico levantou terrivelmente aborrecido. A avezinha pousou sobre um arbusto. O arbusto balançou a avezinha. Já haviam se passado quinze minutos de balanço, pra lá e prá cá; mas, mesmo assim, o passarinho achava que não se divertia. Então, foi a uma biblioteca e pediu o mais novo romance de Mistério, que trazia este título sensacional: Três Manchas de Tinta Sobre os Olhos Sangrentos do Bandido Aleijado. O Tico-Tico começou a ler. O galho balançou; porém, nem o balanço e nem a leitura conseguiram diminuir o tédio terrível que se apossara da alma da avezinha.

– Devo continuar lendo e balançando, porque, segundo o meu médico, um romance de Mistério e uma balançadinha fazem muito bem ao espírito – disse a pequena ave.

As nuvens cochilavam, o riacho roncava um ronquinho delicado, as ervas tiravam uma soneca balançando-se no campo. Somente o infeliz arbusto tinha de trabalhar.

– Por hoje, chega – disse o passarinho depois de uma hora, levantando vôo. O arbusto suspirou. Mas a avezinha continuava chateada, chateadíssima; estava mesmo encolerizada, quando se encontrou com o Regente.

– Senhor Regente, eu estou aborrecidíssimo!

– Aborrecido, Vossa Majestade? Isso é verdade? Meu Deus, providenciarei tudo para que volte a ficar contente. Queira acompanhar-me.

E levou o Tico-Tico até um aeroporto e mostrou-lhe um moderníssimo avião.

– É um dos mais modernos aparelhos de vôo. Está à sua disposição. Podemos fazer uma viagem através do mundo.

Entraram. O avião começou a correr, deu duas ou três engasgadas, levantou vôo entre cheiro forte de gasolina derramada e, depois, com a maior simplicidade, explodiu!

O passarinho olhou com certa curiosidade a cara do Regente.

– Vossa Majestade ainda está triste? Não acha que foi interessante? – Perguntou todo entusiasmado o Regente, que havia sofrido umas arranhaduras.

– Muito – respondeu o Tico-Tico, enquanto olhava suas penas ligeiramente chamuscadas. – Mas, sinceramente, eu não preciso de tanta gasolina para voar, embora eu seja ainda um pássaro jovem. Talvez a minha morte possa divertir outros animais... a mim não. Estou aborrecido, aborrecidíssimo!

– Majestade! Estarei à sua disposição até a minha morte. Venha comigo, por obséquio.

Eles começaram a ir. Foram indo e, finalmente, chegaram a uma grande floresta, densa, escura, terrível. Era noite. Troncos verdes, vermelhos. Grutas misteriosas. Ladrões. Bandidos furiosos. Um chefe zarolho. Torturas de gelar o sangue. Rios de sangue. Dentes brancos jogados sobre a terra. Vítimas pálidas, tremendo. Revólveres. Gritos agudos. Gritos longos, curtos, baixos, altos, pontiagudos. Relâmpagos. Castelos. Morcegos. Terror! TERROR!

E o Tico-Tico gritou, enraivecido:

– Ah! Grande porcaria! Será Agatha Christie outra vez? Será que você não notou que eu estou aborrecido, aborrecidíssimo?!

O Regente empalideceu e gaguejou:

– Eu pos... posso...

– Não fale mais nada – disse severamente a avezinha. – Naturalmente, você pensa que sou algum estulto. Estou aborrecido, aborrecidíssimo!

– Mil perdões! Agora, Vossa Majestade ficará contente. Tenho certeza!

Então, eles viajaram três semanas. O pequeno pássaro continuava de mau humor. O Regente continuava com medo. Finalmente, avistaram uma cidade. O Regente, não se contendo de tanto júbilo, exclamou:

– Eis! Uma cidade nova, gente nova, nova arquitetura, nova música, nova moda, nova novidade!

O passarinho contemplava.

Uma grande cidade. Cores gritantes. Árvores cinzentas. Homens. Mulheres. Cabeças triangulares. Cabeças quadradas. Sem cabeça. Zig-Zag. Torres desconjuntadas. Cachorros. Gatos. Orquestra. Desarmonia. Um rio seco. Árvores desfolhadas. Pés sobre o céu. Um novo colorido no céu. Reclames, assobios, zig-zag, bum, brr, krr.

A avezinha ficou furiosa:

– Essas tolices eu já vi na exposição dos “Jovens Artistas Caídos Por Terra Durante a Infância”. Estou aborrecido, aborrecidíssimo!

O Regente gaguejou.

O Tico-Tico encolerizou-se. O Regente tremeu de medo. Ele não queria perder o emprego; por isso, levou o Tico-Tico até a mais moderna das cidades, Maquinaburgo...

Uma cidade grande. Fábricas soltando pelas chaminés fumaça negra em forma de demônios. Ar negro. Ar frio. Máquinas gigantescas. Homens-robôs. Escravos.

O passarinho não podia falar de tanta raiva. O Regente tremendo e gaguejndo, decidiu fazer uma última tentativa, porque a pequena ave continuava aborrecida, aborrecidíssima.

Depois de mais de dois meses chegaram a uma cidade chamada Recordópolis.

Longos boulevards. Praças gigantescas. Um poste altíssimo. Sobre o poste um homem sentado, recordista mundial de permanecer sentado num poste! Homem alucinado devorando dois mil sanduíches em meia hora! Automóveis. Grandes corridas, velocidade selvagem! Recorde mundial! 114 mortos de fome por minuto! Recorde mundial! Palácio com 569 quartos! Recorde mundial! Casas sob os alicerces de ponte! Recorde mundial! Luzes, sombras, assaltos, mortes, barulho, gargalhadas, prantos, ranger de dentes, peste! RECORDE MUNDIAL! Recordópolis!

O passarinho quase explodiu.

– Eu não quero enlouquecer! – Gritou.

BANG!

O Regente suicidou-se.

O Tico-Tico levantou vôo. Voou. Vooooou. Finalmente só.

O ar era cada vez mais puro. Havia um odor fresco de terra. Uma orquestra invisível de canto de outros pássaros e grunhidos de animais. A brisa acariciava a relva. Um sol de ouro brilhava no céu alegre, muito azul. O passarinho chegou a um prado maravilhoso. Caminhos largos, sombreados. Homens tranqüilos, afáveis. Um humor amigo e meigo. Silêncio. Riso. Cultura. Uma casa branca, bela e cheia de harmonia.

O pequeno pássaro sentiu-se feliz e suspirou:

– Finalmente... Era isso que eu procurava. Um lar. Harmonia. Já não estou aborrecido. Ficarei aqui até o fim da minha vida.

O Tico-Tico voou até a porta da casa branca, sobre a qual havia uma placa de mármore em que se podia ler: “SÓ PARA LOUCOS”.

R F Lucchetti
Enviado por R F Lucchetti em 22/12/2014
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