FELICIDADE É BRINQUEDO QUE NÃO TEM...
Não sou filho de Noel!
Nunca, em meus treze anos de vida, estivera tão triste.
Mamãe foi internada às pressas no Santa Casa com complicações cardíacas e, de acordo com o doutor, não veria o Réveillon.
-Jesus vai me curar!- caducava, combalida.
-Duvido!- eu retrucava.
Vivíamos em conflitos.
Ela falava em fé, amor ao próximo e engodos bíblicos.
Eu? Tava mais pra ateu...graças a Deus!
Tínhamos apenas uma coisa em comum: torcíamos para o Palmeiras.
Após a bateria de exames os médicos menearam a cabeça.
-Só um milagre!
Pra piorar, o provedor da irmandade proibiu que eu dormisse na clínica pois os pacientes, impacientes, reclamaram da minha gritaria.
-Goooooollllllll.....éééé do Palmeiras!- me empolgava, ao ver TV.
Certa noite, ao sair do hospital, ancorei defronte à uma curiosa cabana na calçada. Em seu interior, um homem de cabelos brancos e pele negra dividia a falta de espaço com um cachorro de nome Gódi!
Como descobri?
-Vai deitar Gódi!!!- ordenou, quando o cão desembrulhou os dentes.
-Qual é o seu nome, amigo?- perguntei.
-É Manoel!- respondeu, com um sorriso que parecia música.
Trocamos poucas palavras, o suficiente para simpatizar.
Manoel era um inventor de verdades, morava há anos na rua, não tinha parentes e os pertences que possuía cabiam numa sacolinha.
Face triste, ânimo anêmico, tentara o suicídio por inúmeras vezes.
Carregava mais um defeito: era fanático pelo Corinthians.
-Vai Curintia!- gritava, tentando me atazanar.
Durante o dia eu acompanhava a minha genitora no hospital e à noite, antes de ir pra casa, batia o ponto no cafofo do Mané.
Parecíamos irmãos!
-O que vai querer de Natal ?- me arguia, quase todo dia.
-Num sei!- respondia, mentindo.
Mesmo lutando bravamente pela vida, minha mentora estava prestes a ser desenganada pelos médicos...e enganada por Deus!
Na véspera de Natal, escorado na janela do quarto, recordei dos perrengues que ela passara para me prover.
Eu iniciara a guerra entre nós e metralhava-a com o meu vocabulário bélico. O arrependimento bateu!
Beijei-a de forma inédita, declarando o cessar fogo.
-Te amo, mãe!- cochichei.
Lá embaixo, ao lado do abrigo, ri ao ver o Manoel trajando um gorro ridículo e o Gódi ultrajando os transeuntes, travando o passeio público.
-Ho ho ho!- gritava, abanando um sininho.
Ele era parte da sucata social e sofria com o desprezo.
Eu enraivecia ao lembrar que os sortudos teriam banquetes e regalias e os desafortunados festejariam entulhados nas ruas sombrias.
Não seriam só os sinos que gemeriam naquele natalício!
De manhã, a enfermeira se apressou em me contar que um doador de coração aparecera e que estavam agilizando o transplante da mamãe.
Desacreditei!
Fui correndo contar a novidade para o Manoel mas, ao chegar no muquifo, encontrei o Gódi deprimido.
O vizinho me deu um envelope e uma chibatada:
-Ele desistiu, tirou a própria vida. Sinto muito!
Não ousei ler.
Voltei pesaroso para o leito da minha mãe, onde permaneci por horas.
Após tanto titubear, criei coragem e abri :
Feliz Natal amigo!
Fui morar com Ele, lá tem mais espaço.
Ass: Emanuell (não é Manoel,viu?)
PS: Adote o Gódi.
Quando mamãe finalmente apareceu, estirada na maca, sequei os olhos marejados e lasquei-lhe um abraço grudento.
Mantiveram o doador em sigilo, mas a coincidência me fez matutar.
-Obrigado de coração, Emanuell.
"Milagres acontecem todos os dias, a gente é que vive distraído".
Encasquetei quando, no Réveillon, minha velha ouviu um rojão e entoou:
-Vai Curintia!!!
Putz...nem o Papa contorna essa contenda!