591-A HISTÓRIA DO SACRISTÃO -Memórias de minha cidade

O velhinho estava sentado no banco de cimento da praça da matriz. As folhas da enorme sete-copas caiam e o chão já estava forrado delas. Manhã de outono, de sol frio cujos raios pouco aqueciam o corpo mirrado. Um vento fresco o irritava, fazendo-o encolher dentro de seu capote surrado.

Todas as manhãs, até as nove, nove e meia, seu Ricardo ficava ali. Sentado no banco, bem defronte à porta da igreja, separado apenas pela larga escadaria e pela área destinada à passagem de carros engalanados, quando traziam noivas, ou do carro da funerária, levando defuntos depois da missa de corpo presente. Ali encolhido, ele parecia esperar e, de cera forma, esperava, sim. A morte? Talvez. Mas, esperava principalmente por uma redenção. A própria redenção.

Eu gostava do seu Ricardo, e quando podia, sentava ao seu lado, para dois dedos de prosa. Nas mais das vezes, era apenas um Bom Dia, como vai, seu Ricardo? pois o contador do banco onde eu trabalhava era exigente com relação ao horário.

Naquela manhã, porém, sentei-me sem pressa: era meu primeiro dia de férias e só pelo hábito estava ali na praça.

— Então, seu Ricardo, como vai de saúde? — Perguntei.

— Como Deus quer, meu filho, como Deus quer. — Me respondeu. E notando minha descontração, perguntou: — Não vai trabalhar?

— Não, estou de férias a partir de hoje. Nem sei mesmo porque levantei tão cedo e vim pra cá. É à força do hábito.

— É... O hábito, a rotina... Sabe que dia é hoje?

Detive-me um pouco antes de responder, pensando nos feriados, dias santos, coisas assim. Não me lembrei de nada.

— Não, não sei de nenhuma comemoração hoje.

— Hoje faz vinte anos que morreu o Monsenhor Matoso. Lembra-se dele?

— Como não lembrar? Foi um homem inesquecível. Tive até algumas pendências com ele.

— Pois é. Nem uma missa vão rezar por ele. Completamente esquecido.

— Mas tem uma rua lá no bairro da Ingazeira, com o nome dele.

— Nome de rua! Que significa isso? Já ninguém se lembra dele. A moçada de hoje nem sequer o conhece.

Seu Ricardo falava com a voz embargada. Estava realmente emocionado com a lembrança... Ou melhor, com o esquecimento do padre que serviu como sacristão.

Teria mais de noventa anos, pois fora namorado de uma tia minha que, se tivesse viva, estaria beirando os cem. Sua vida fora toda passada na sacristia da Igreja, ou nas adjacências.

— Pois é, continuou falando na voz mansa e baixa de todas as pessoas idosas. — Eles podem se esquecer, mas eu não. Me lembro do Monsenhor mais do que meu pai. Ele foi mesmo um pai pra mim, pois me adotou quando eu era rapaz, nem barba tinha, quando meu pai sumiu de casa, minha mãe já tinha morrido, e fiquei sozinho na tapera sem saber o que fazer da vida.

— Porque ele adotou o senhor?

— Eu era coroinha, ajudava nas missas. Antes de morrer, minha mãe tinha falado com o Monsenhor “que eu era muito quieto, quem sabe num pode ser coroinha?” e foi assim. Depois, quando meu pai sumiu, vim morar na casa paroquial. E nunca mais saí pra mais nada.

— Mas o senhor teve uma namorada...?

— Chiiii...! Isto já faz mais de setenta anos.

— Ela era minha tia.

— Eu sei, eu sei. Pensa que esqueci da Dona Jurema? Mas num deu certo o namoro, e ela foi para seu lado, eu fiquei aqui no meu. Nenhum dos dois casou, nem ela, nem eu. Duas almas solitárias, sem destino na vida.

— E o Monsenhor? — voltei ao assunto que me interessava naquele momento.

— Que é que tem?

— Diziam que ele era muito exigente, até ranzinza. Como é que o senhor agüentou?

— Podia ser ranzinza, mas pra mim sempre foi muito bom. Sabia que no tempo da segunda guerra mundial, ele ajudou muita gente. Tinha racionamento de açúcar e sal, fornecidos às famílias mediante apresentação de tíquetes quinzenais. Pois o Padre conseguiu centenas de “carteirinhas” de tíquetes e distribui entre os pobres. Também tinha muito cuidado com os velhinhos do Asilo São Vicente de Paulo.

— E aquela implicância com os maçons, com o Clube Elite?

— Isso foi no começo, quando ele chegou aqui, ainda não era Monsenhor, era só Padre Matoso. Então, como os maçons faziam muita movimentação na cidade, ele agarrou a maçonaria para atacar nos seus sermões de domingos.

Seu Ricardo deu uma parada. Parecia estar cansado. Fiquei receoso de estar provocando muitas emoções no velho. Mas, após alguns momentos, olhou pra mim e deu um sorriso maroto, e prosseguiu:

— Acho que ele tinha é ciúme dos maçons.

— E o Clube Elite...?

— Com o clube foi diferente. Não tolerava os bailes que tinha todos os meses, mas era mais pelo barulho que faziam até madrugada, e a casa paroquial ali de lado do clube, ninguém conseguia dormir. Então o Padre Matoso subia no púlpito e desandava o clube, o diretor, os bailes, quem ia ao baile, quem não ia e ficava na porta fazendo barulho.

— Diziam que ele era vivia excomungando todo mundo... Os espíritas, as putas...

— Ah, não, isso não! — Seu Ricardo quase saltou de dentro do capote. — Ele ficava bravo no sermão, mas fora dali, não tinha isso de implicar. Pra mim, tinha um defeito, só um. Era corintiano roxo e gostava de alardear, principalmente quando seu time ganhava. E não agüentava gozação.

— Ouvi falar que na barbearia do João Careca...

— É. Ele cortava o cabelo lá. E gostava de ir lã depois que o Corintians ganhava, Então, gozava todo mundo. Era outro homem.

Eu estava mesmo com tempo, e Seu Ricardo parecia disposto a rememorar. Cutuquei a memória dele.

— Mas ele implicou com os irmãos Lassalistas, que dirigiam o Ginásio Paraisense?

— É porque os irmãos não davam muita atenção. Nem convidavam o Padre Matoso para celebrar as missas na capela do ginásio, nas ocasiões solenes. Vinha um padre de fora, de Varginha, e aí ele ficava despeitado.

— E tratou de por os irmãos pra correr.

— Não foi bem assim. Acho que foi em 1947 ou 48, que ele assumiu a direção da Escola de Comércio, e então, passou a fazer “concorrência” com os irmãos. Havia ensino de nível ginasial e as aulas eram à noite e mais baratas. Além do que, ele dava bolsas de estudo a torto e a direito. Os irmãos, com a queda da freqüência no ginásio deles, arrumaram as malas e se foram.

— Então ele já era Monsenhor?

— Não, isso foi depois que ele foi a Roma, no Ano Santo, em 1950. Naqueles tempos, uma viagem dessas, com visita ao Papa, dava um prestígio danado. Logo depois, ele foi elevado à condição de Monsenhor.

— Ele não parava! — Comentei, para puxar mais ainda a memora do seu Ricardo.

— É verdade. Nem bem acaba de rezar a missa das sete (a única do dia), saia para suas “administrações” como ele dizia. Antes, já tinha organizado o orfanato para meninas abandonadas. Lá tinha a congregação das Irmãs de Santa Terezainha, mas o Padre Matoso passava lá todos os dias, pra saber se estava faltando alguma coisa, se tudo estava certo, etc. No orfanato ele era muito querido, as irmãs tinham o maior respeito e as meninas adoravam ele. Depois, ia pro asilo dos velhinhos. Após o almoço,

Ia para a escola de comércio e passava as tardes por lá. Isto tudo sem descuidar dos serviços da paróquia: as novenas, os tríduos, o mês de Maria. As festas do padroeiro, de Nossa Senhora Aparecida. As congregações também mereciam muita atenção dele.

— E caso da rádio...?

— Ah! Esse caso foi dose pra cavalo. O diretor da emissora queria vender, e queria negócio à vista. Veio um pessoal de São Paulo, gente do Assis Chateaubriand, interessado no negócio. Quando o monsenhor (então já era graduado) soube, ficou bravo com o Dr. Tarquínio, dono da rádio. Queria que ele fosse consultado em primeiro lugar. Mas o Dr. Tarquínio disse que nem sabia que o Monsenhor tinha interesse ... e dinheiro... pra comprar a rádio. Era negócio de milhões, sei lá quanto, mas era negócio grande. Então, quando se falou em dinheiro, que a paróquia não teria o montante, o Monsenhor ficou tiririca. Eu estava com ele, na casa paroquial, e assisti a conversa. “O senhor fale o preço mínimo, pra lhe pagar na hora”, disse monsenhor. O doutor Tarquínio ficou embasbacado e falou: “São dois milhões e quinhentos mil. Pro pessoal de S. Paulo pedi mais, porque eles querem prazo. Pro senhor, dois milhões e quinhentos mil”. Era dinheiro pra chuchu, em meados da década de 1950. Então o monsenhor respondeu: “negócio feito. Compro de porteira fechada, como dizem os fazendeiros.”

Seu Tarquínio levou susto, mas o negócio estava fechado.

— Mas, e o dinheiro? Onde o Monsenhor conseguia tanto dinheiro assim? A paróquia nem era tão rica assim... — perguntei, agora também curioso sobre este aspecto.

— Bem, o dinheiro das coletas era mais do que suficiente para a paróquia. Sobrava muito, que o Monsenhor ia pondo no banco, todas as semanas aqueles cruzeirinhos das coletas, e a coisa foi aumentando, com o decorrer dos anos. Depois, veio um dinheiro quando a Igreja do Rosário foi demolida. E tinha um detalhe que ninguém aqui na cidade sabia, tou lhe contando hoje em confiança. O Monsenhor nunca mandou dinheiro nenhum pro bispado. A parte do bispado é a metade de tudo que é coletado, mas daqui desta paróquia, nunca foi um tostão.

— E o bispo? Nunca exigiu o pagamento do Monsenhor?

— Bom, exigia, sim. Mas, no começo, o Padre Matoso dava desculpas, que estava fazendo isso e aquilo (e estava mesmo, o orfanato e outras obras) e ficou por isso mesmo. Depois, quando virou Monsenhor, o bispo mandava umas cartinhas muito delicadas (eu lia, sim, pois o monsenhor me mostrava) e foi por aí. Quando apareceu o negócio da emissora de rádio, a conta da paróquia já tinha mais do que o suficiente. Todo mundo na cidade ficou pasmo. Até os homens de São Paulo, interessados no negócio, se assustaram com o poder de fogo do Monsenhor.

Seu Ricardo parou de falar. Respirou profundamente por alguns minutos. O corpo e a voz pareciam cansados, mas nos olhos brilhavam duas chamas que só se vê em olhos de gente entusiasmada. Quando demonstrou estar recuperado (pois não só a evocação como a conversação lhe exigiam esforços), voltei a estimular com outra pergunta:

— E os congadeiros?

— Padre Matoso nunca gostou deles. Achava que era folclore, que não devia misturar com religião. Mas como já era tradição da cidade, coisa centenária, ele teve de acreditar. Mas nunca engoliu. Acha muito ruim nos dias de congados — justamente na semana que vai do Natal ao Ano Novo — quando a igreja ficava suja de terra vermelha, trazida pelas botinas dos congadeiros ou mesmo pelos pés descalços dos moçambiqueiros. Os fiéis também sujavam muito a igreja. Dia trinta e um de dezembro era dia de lavar a igreja, um transtorno bem na véspera do Ano Novo.

— Ele queria que os congadeiros ficassem na Igreja do Rosário. Igreja de negro...

— É, mas os congadeiros não aceitaram não. E depois, quando a prefeitura indenizou a paróquia pela Igreja do Rosário, a pendência acabou.

— Indenizou? Pela Igreja do Rosário? Como foi isso?

— É, naqueles tempos não havia tanto tombamento de prédios antigos. A igreja do Rosário era colonial, paredes de pau-a-pique, adobe, e estava precisando de uma reforma. Alguns beirais já tinham caído. Monsenhor não queria reformar, então, a prefeitura deu um dinheiro para a paróquia, e demoliu a igreja histórica. Fez uma estação rodoviária no lugar.

— Pois é, o senhor sabe da história desta cidade, que, afinal se confunde um pouco, com a do Padre Matoso.

— É, meu filho. Mas ninguém quer saber mais de histórias...

Seu Ricardo estava visivelmente cansado. Não quis insistir na conversa. Era perto das onze horas, eu devia voltar à minha casa apara o almoço. Convidei o velhinho:

— Vamos almoçar lá em casa? É perto. Se quiser, chamo um carro de praça.

— Não, obrigado. Mesmo aposentado, tenho um prato de comida garantido ali na casa paroquial. — E apertando minhas mãos, prosseguiu, emocionado: — Foi bom falar com você. Você pode contar essas histórias do Padre Matoso, corrigir muita impressão errada que as pessoas têm dele.

— Mas o senhor disse que ninguém mais se lembra dele?

— Padre Matoso, ou melhor, Monsenhor Matoso é homem da história. Alguém tem de lembrar as coisas boas que ele fez. Pelo que você me mostrou, só se sabe dos aspectos negativos de sua vida. Agora que você já sabe de tudo — ou quase tudo — pode esclarecer.

Senti o que ele pretendia me passar. O resgate da história do Monsenhor Matoso era a sua própria redenção. A redenção que ele esperava... há quanto tempo?

Dizem que coincidências não existem. Não sei. O fato é que, naquela mesma tarde, uma suave tarde de outono, na casa paroquial, após o almoço, seu Ricardo foi puxar um cochilo e não mais acordou.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 18 de fevereiro de 2009

Conto # 591 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Os contos da Série Milistórias são arquivados na

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 20/12/2014
Reeditado em 20/12/2014
Código do texto: T5075673
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