UMA PEQUENA HISTÓRIA DE NATAL
UMA PEQUENA HISTÓRIA DE NATAL
Madame Dayse, assim chamada, era uma lady.
Tendo pertencido à alta sociedade, viveu dias gloriosos, tanto por sua fortuna e beleza, como por realizar-se, amparando os menos favorecidos.
Enviuvou cedo; o marido, rico industrial, deixou-lhe dois filhos adolescentes, que ela criou, incentivando-os a seguir os mesmos padrões de modéstia, e cultivar o espírito de benevolência que a ela eram naturais.
Madame Dayse dedicou-se especialmente ao socorro de criancinhas. Trabalhando como voluntária em diversas instituições não mediu esforços para oferecer aos seus protegidos, além de presença e carinho, assistência financeira em todos os termos de suas necessidades.
Adultos, os dois filhos formaram-se: um deles como tecnólogo, atuando na área de petróleo, minério e gás natural. Pós- graduado foi-lhe oferecido um posto na Noruega, como consultor; o outro, médico, prestava serviços no Congo, África, na instituição Médicos sem Fronteiras.
Tendo os filhos distantes, Dayse entregou-se com maior entusiasmo ao seu trabalho assistencial, criando uma ala hospitalar especializada em nascituros cujas mães, por inúmeros motivos não tinham como cria-los.
Madame Dayse dispensava todo o seu amor àqueles pequeninos, principalmente aos acolhidos, advindos de total abandono, sem filiação, ou mesmo um nome...
Em noites de Natal, os ali chegados nessa situação extrema, antes de serem encaminhados à adoção, eram batizados com os nomes Noel, ou Noelia. Assim Dayse os colocava sob a proteção misericordiosa do Menino Deus.
Anos se passaram: No outono da vida, Dayse não se deixou vencer pelo cansaço: mesmo sofrendo de insidiosa doença que quase a impedia de locomover-se, não podendo exercer suas ações como voluntária, ainda assim, nos Natais, ainda era levada à sua ala de nascituros para embalar nos braços pequenos enjeitados ali nascidos naquela noite.
Naquele ano seu estado de saúde piorou sensivelmente. A medicação que lhe era ministrada deixava-a prostrada na maior parte do tempo; suas forças se exauriam pouco a pouco.
Madame Dayse permanecia em sua mansão cercada pelo cuidado de competentes enfermeiras; nada lhe faltava em razão de aparatos para seu conforto: um elevador fora instalado para transportá-la e à sua cadeira de rodas ao andar inferior da casa e suas dependências, como aos pomares e aos grandes jardins, onde, quando se sentia melhor, ia distrair-se.
Era visitada por amigos que muito a estimavam; os filhos procuravam sempre estar junto dela com a frequência que lhes permitia o trabalho que executavam do outro lado do mundo.
Estava próximo o Natal. A pedido de Dayse a decoração, a iluminação artística dos jardins, da fachada e de toda a casa foram executadas com todo o esmero; Um presépio estaria apresentado num dos salões. Madame Dayse esperava a vinda dos filhos para as festas; uma ceia seria servida para convidados especiais, entre eles crianças que ela amparava desde muito. Para Dayse o Natal sempre fora a verdadeira data de confraternização, quando todos os corações deveriam rejubilar-se e abrir-se ao amor universal.
Dayse, na expectativa de tantas emoções, contava estar mais forte e bem disposta para participar dos festejos.
Antevéspera de Natal. Na casa silenciosa todos repousavam.
Chovera durante o dia e a noite, muito fresca, iluminada pelo brilho suave da lua, exibia um céu sem nuvens, como um manto que se desdobrasse sobre a natureza.
Uma brisa branda entrando pela janela propagava o perfume das roseiras florescentes.
Madame Dayse despertou: moveu-se na cama livremente sem sentir dor. Ergueu-se e apoiada nos travesseiros, respirou, enchendo o peito com o ar frio e perfumado. Fitando a janela imaginou-se nela debruçada, admirando o jardim, naquele momento, iluminado pelo brilho ofuscante das mil lâmpadas que o cobriam por inteiro. Como seria feliz se sua incapacidade física, apenas por um momento, não a tolhesse, permitindo-lhe realizar aquele anseio.
Esse desejo intenso encorajou-a: sentou-se na cama e deixou que seus pés tocassem o chão. Nem sequer lhe ocorreu usar a campainha para que uma das enfermeiras, pronta a seu chamado, pressurosa, viesse em seu auxílio.
Dayse, inexplicavelmente, sentiu-se forte e capaz. Firmou-se, ergueu-se, equilibrou-se; de pé trocou o primeiro passo, outro mais, e imbuída da coragem de sua nova postura, caminhou até a janela; ali se debruçou cheia de contentamento, vislumbrando enfim o espetáculo das árvores coroadas pelas guirlandas tremeluzentes.
Seu olhar percorreu, sem pressa, o espaço de seu jardim, que podia ser alcançado, visto do alto da janela, desde as requintadas roseiras, as esguias palmeiras, a fonte luminosa lançando alto, seus jatos multicoloridos, até a ala plantada com chorões...
Perdida nesse encantamento, Dayse lembrou-se que ainda não havia visto o novo presépio erigido no salão pelos decoradores. (Só poderia visita-lo levada, por uma de suas auxiliares, e isso, dentro de algumas horas).
Nova ideia brotou em sua mente estimulada por seu ato bem-sucedido de alcançar a janela: “se tentasse descer ao andar de baixo e visitar o presépio?”.
Madame Dayse conhecia sua situação de dependência. Entretanto, naquele momento, sentindo no corpo leve, seus movimentos restabelecidos, julgou-se pronta para lançar-se a uma nova tentativa.
E, no silêncio daquela madrugada, Dayse, caminhou até a porta, abriu-a; venceu serenamente a distância que a separava da escadaria; deteve-se diante do lance dos degraus em curva que a separavam do andar inferior. Um desconhecido fulgor a tudo iluminava.
Madame Dayse nem sentiu os pés tocarem o solo enquanto descia. Leves, seus passos venceram a distância, docemente, como se flutuassem.
Buscou o salão onde o magnifico presépio colheu o seu olhar. Atentou para os encantos da nova ornamentação, e sentindo-se grata pela ousadia de ali ter chegado sem qualquer esforço, voltou-se para a manjedoura onde repousava e imagem do Menino Deus.
Seus olhos encontraram então, não a imagem, mas um menino vivo, que a fitava com ternura e lhe estendia os seus bracinhos nus. Sem surpresa, Dayse o tomou a si; aconchegou-o ao peito, acariciou-o, sentindo nas mãos a brandura da pele viva, macia e morna; protegeu-lhe a nudez envolvendo-o na mantilha com que se agasalhara, lá em cima, ao deixar o próprio leito.
Colhida pela graça do milagre, ajoelhou-se, sentindo envolve-la diáfana luz e suave perfume.
Assim a encontraram, de joelhos, aos pés da manjedoura vazia, apertando nos braços a imagem do Menino Deus.