585-ANO DA PROIBIÇÃO DE LER GIBIS- Crônica

Série CDC = Cenas do Cotidiano- 2º. Da série

Início de 1946.

As leituras de gibis me tinham sido proibidas, desde que tivera pesadelos e andara pelo quarto, dormindo, dizendo ser o Tocha Humana.

Mamãe fora categórica: “De hoje em diante, só pode ler livros do grupo”.

E papai reforçou: “Este ano você vai ter de estudar muito, pra tirar o diploma do grupo”.

Entretanto, não abandonei os amigos que tinham gibis e com os quais eu trocava as revistas ou dos quais eu alugava por um ou dois dias. Todas as tardes, após o almoço, a gente se encontrava nas proximidades da venda do seu Zico, na esquina: eu, Zezinho, Benito, Jaime, Cido e outros. Era uma turma unida. Tão unida que, quando lhes disse que não podia mais ler gibis, todos acharam graça e me arreliaram:

=Ce é bobo, sô, lê escondido.

Mas cadê coragem para desafiar mamãe e papai? Meus gibis haviam sido tomados e, como descobri mais tarde, destruídos. O dinheiro que ganhava = trinta cruzeiros por mês = carregando as sacas de pão quente da padaria do Zé Dramis para a venda do Júlio Símaro, controlado estritamente por mamãe, não podia ser gasto com gibis.

A salvação foi a Dona Maria Duarte, mãe do Benito.

“Olha, quando você quiser, pode ler a coleção das revistas do Benito aqui em casa”.

Ela e os dois filhos, Benito e Rui, moravam numa casa alta, defronte à nossa casa. Era só atravessar a rua. O marido trabalhava em São Paulo, vinha de vez em quando visitá-los. Mas toda a semana Benito recebia, pelo correio, um canudo grosso: eram os três exemplares da semana anterior de “O Globo Juvenil”.

“O Globo Juvenil” não era encontrado em nossa cidade. Saía três vezes por semana, nas terças, quintas e sábados. Não era considerado um gibi, mas sim um jornalzinho de quadrinhos, no formato tablóide, e tinha 32 páginas. As capas e as páginas centrais eram coloridas. Traziam as histórias seqüenciadas de Tarzan, Jim das Selvas, Mandrake, Flash Gordon, Brucutu, Super-Homem, Homem-Morcego (Batman), Tim e Tok nas Selvas, Dick Tracy, Capitão César e mais uma dezenas de heróis que não apareciam nos gibis comuns. Os capítulos das histórias se sucediam, alternando-se: havia os heróis das terças, os das quintas e os de sábado, de forma que as aventuras se estendiam por meses.

Benito era cuidadoso, e mantinha as revistas numa prateleira debaixo de sua mesa de estudar. Como eram revistas mais frágeis do que os gibis mensais (todas as páginas, inclusive as capas coloridas, eram em papel jornal e rasgavam-se facilmente), ele não emprestava pra ninguém. A oferta da sua mãe não ia bem com o desvelo que ele tinha com o monte de revistas (calculo que eram pra mais de cem e todas as semanas chegavam mais três). Mas Benito concordou, com dia e hora marcados, e a leitura era feita na sala da as casa, sobre a mesa, sem o perigo de serem amassadas nem rasgadas.

Ia à casa de Benito todas as tardes, inventando uma desculpa para mamãe, que nem lembro qual era, mas que ela aceitava. E então, naquele ano da proibição, embora impedido de comprar, alugar e ler gibis, acho que li mais histórias em quadrinhos do que em todos os anos anteriores.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Crônica/conto # 585 da Série Milistórias/ 2º. De Cenas do Cotidiano. –

Belo Horizonte, 9 de janeiro de 2010.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 18/12/2014
Reeditado em 18/12/2014
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