583-BARRIGA CHEIA, PÉ NA AREIA - Memórias do autor

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=Areia, areia, barriga cheia, pé na areia.

Desta forma, Tio Gordo despachava os sobrinhos-netos que ficavam infestando a loja. Dava uma banana para cada um e nos mandava brincar na rua.

A rua Dr. Placidino estava sendo calçada naquela época. Isto é, apenas o quarteirão defronte à loja de Tio Gordo. Ninguém soube explicar porque apenas aquele quarteirão, onde Tio Gordo tinha a sua loja, estava recebendo o importante melhoramento. Na pequena cidade apenas a Praça da Matriz era calçada, e à falta de melhor explicação, corria a história que quem mandara calçar a rua seria o próprio Tio Gordo.

Os caminhões chegavam cedo, carregados de areia e pedras que pareciam enormes rapaduras.

=São paralelepípedos, explicava o tio, sem querer ser pedante, mas demonstrando conhecimento na área. = São pedras Cabo Verde e duram tanto quanto o mármore.

As pedras vinham da pedreira dos Cantieri, cujo perfil podia ser visto quando o sol se punha, encimado por uma solitária e gigantesca árvore. Via-se até o paredão a pique, dinamitado uma vez por semana, para tirar as pedras.

O caminhão era um velho Fordinho ano 26 ou 29, que subia gemendo o pequeno aclive da rua. Depois de descarregar o caminhão, Seu Étore Cantieri chegava até a loja de Tio Gordo, que lhe oferecia um copo de gasosa, bebida refrescante fabricada pelo próprio Tio.

Pedra e areia. Eram os únicos materiais usados pelos calceteiros para calçar a rua. A areia chegava em outro caminhão, um Chevrolet Tigre (o nome estava no capô do motor) com a cabine danificada e sem a porta do lado direito. O dono chamava-se seu Gamaleão e tinha um aspecto feroz, cabelo e barbas compridos, braços peludos e cara de poucos amigos. O ajudante era seu filho, Elesbão, um rapaz de cara ruim. O caminhão mambembe, o chofer e o ajudante combinavam, era um trio de decadência, de feiúra e aparente ferocidade.

Quando os caminhões chegavam, os meninos que estavam brincando na areia espalhada pela rua, saiam correndo, alertados pelos respectivos motoristas:

=Sai, menininada, que lá vai pedra! = Gritava o seu Cantieri.

Ou

=Lá vem areia! = Um de nós alertava os companheiros.

Uma manhã, Arturzinho estava tão entretido em cavoucar um “túnel” no monte de areia, que não viu a chegada do caminhão de areia nem o alerta dos companheiros. Permaneceu distraído, brincando.

Elesbão, se de propósito ou sem querer, não se soube nunca, atirou uma pazada de areia sobre o garoto, atingindo-o nas coxas e cobrindo as pernas. A areia caiu com força sobre o garotinho.

=Aiiiiii! = gritou Arthurzinho.

Nós corremos pra dentro da loja de Tio Gordo, que, ao ouvir o grito do sobrinho, chegou rapidamente à porta. Ao Ver o garoto semi-enterrado no monte de areia, correu para ele, sacudindo sua enorme barriga, e gritando para Elesbão, que continuava jogando areia, descarregando o caminhão.

= Ma, pára, pára com questa areia! Sei pazzo?

Tio Gordo pegou o sobrinho, limpou suas pernas e ocarregou para a loja. Nós ´fomos atrás. Ricardo, da porta, sentindo-se seguro, mostrou uma banana com os bracinhos,

para Elesbão.

= Non está machucado, Graça de Dio = disse Tio Gordo. Mesmo assim, Tio Gordo passou um líquido que chamava de arnica canforada, que era usado como remédio para tudo.

Éramos uns cinco ou seis garotos a rodear Tio Gordo e Arturzinho, deitado no balcão, enquanto o remédio era esfregado nas pernas. Depois, descendo meu irmão, falou pra todos:

=Ecco! Vamos tomar gasosa para sarar!

E distribuiu entre nós copos da deliciosa bebida refrigerante e doce, de cor vermelha e gosto de morango.

Continuamos brincando nas areias enquanto durou o calçamento. Mas depois disto, nunca mais vimos Elesbão, que foi substituído por outro ajudante no caminhão de areia. Ninguém me falou nada, mas tenho certeza de que a troca de ajudantes foi feita a mando de Tio Gordo.



Questa = esta

Pazzo = louco

Mostrar uma banana = gesto provocativo, que consiste em fechar o punho da mão direita, dobrando o braço e colocando a mão esquerda no ângulo do braço e antebraço direitos. Muito usado no interior, nos tempos desta história.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 3 de janeiro de 2010

Conto # 583 da Série 1.OOO ISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 17/12/2014
Reeditado em 17/12/2014
Código do texto: T5072388
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