579-SÃO ROQUE - Uma biografia
Fome e Miséria
No início do século XIV a população da Europa passava por extremas dificuldades. Devido a uma série de eventos naturais, principalmente ao excesso de chuvas que arrasavam campos e colheitas, a falta de alimentos causou miséria, fome e mortes. Um registro impressionante fala por si só dessa calamidade: Em apenas seis meses, no ano de 1316, em Ypres, cidade da Bélgica e uma das mais importantes da Europa naquela época, pelo menos 10% da população morreu de inanição.
Não bastassem os problemas de causas naturais, um outro, de conseqüências muito mais trágicas, chegou ainda na primeira metade daquele século: a peste negra.
A Peste Negra
A peste negra foi uma epidemia que grassou a Europa. China, Oriente Médio e outras regiões do mundo no século XIV. Na Europa, o auge da disseminação da peste foi entre 1347 e 1350, quando matou um terço da população da Europa (talvez 75 milhões de pessoas), e provavelmente causou igual mortandade e, outras regiões do mundo conhecido daquela época.
A peste vinha do Oriente. Do Deserto de Gobi, trazida pelas hordas de Gengis Khan, chegou às portas de Constantinopla. Em outubro de 1347, Caffa, uma colônia de Gênova na Criméia, estava cercada pelos tártaros (tropa de Gengis Khan). A peste atacou os orientais com tal intensidade, matou tantos tártaros que foram obrigados a retirar-se, não sem antes contaminar os habitantes da cidade.
De Caffa para Gênova, Veneza, Marselha e outros portos mediterrâneos, a peste alastrou-se com rapidez. Estima-se que tenha matado cerca de 75 milhões de habitantes, um terço da população da Europa na época.
A peste negra abalou a economia. Cidades ricas foram destruídas e abandonadas pelos seus habitantes desesperados à procura de um lugar com ar puro e sem pessoas infectadas. Os servos morriam e as plantações ficavam destruídas por falta de cuidados.
A peste não só dizimou a população como também abalou a civilização européia da Baixa Idade Média, da construção de catedrais, do feudalismo e do mercantilismo.
"Depois da acima dita pestilência, muitos edifícios, grandes e pequenos, caíram em ruínas nas cidades, vilas e aldeias, por falta de habitantes, de maneira que muitas aldeias e lugarejos se tornaram desertos, sem uma casa ter sido abandonada neles, mas tendo morrido todos os que ali viviam; e é provável que muitas dessas aldeias nunca mais fossem habitadas".
Durante o período de atribulações causado pela peste, prosperaram novas formas de religiões místicas, a Igreja Católica começou a ser questionada, e minorias inocentes como os leprosos e os judeus foram perseguidas e acusadas de serem causadoras da peste.
O período crucial da Peste Negra na Europa foi a década de 1350 a 1360. Mas até o final do século, focos persistiam nas grandes cidades e seu entorno.
Montpellier
Montpellier situa-se ao sul da França, não muito distante do porto de Marselha, daí ter sido atingida pela peste com intensidade inaudita. Era já uma cidade importante nos tempos de que estamos tratando. Uma Universidade, a bela catedral e muito edifício importantes daquela época, ainda de pés, atestam a importância da cidade.
Há registros de que existiam diversos conventos, com cerca de 140 frades e monges, dos quais apenas sete sobreviveram à peste.
A Família Roch de Montpellier
A família Roch era uma das mais importantes de Montpellier. Jean Roch, o patriarca da família, era grande mercador, abastado, e exercia funções governamentais na cidade. A esposa, Libéria, era também ligada a outra importante família e herdeira de considerável fortuna.
Vivam confortavelmente em uma casa de dois pavimentos, com diversos quartos, sala com lareira e algumas dependências para os empregados. Pode-se dizer que era mais do que confortável. Para os padrões da época, era uma residência de luxo.
Católicos fervorosos, Jean e Libéria eram liberais e faziam donativos importantes para o bispado e para os diversos conventos da localidade. Eram altamente considerados pelo clero e pelas autoridades locais.
A família Roch atravessou os anos terríveis da peste com relativa calma. Da numerosa irmandade de Jean, apenas um veio a morrer vítima da peste.
Antoine Roch
Neste ambiente de relativa riqueza, importância social e ao mesmo tempo, de tranqüilidade e de benemerência, nasceu, em l350 um menino a que deram o nome de Antoine. Saudável, era como qualquer outra criança. Mas a mãe preocupava-se com uma mancha sobre o peito do recém-nascido, avermelhada e com a forma de pequena cruz. Disso guardou segredo para com o marido. Apenas ela e a empregada de confiança que trocava Antoine sabiam da estranha marca.
A criação do menino seguiu os padrões da época: sempre ao lado da mãe, cuidado por amas que o mantinham alimentado e bem agasalhado, principalmente nos invernos e nas estações de chuva, que se prolongavam pela primavera e entravam pelos primeiros dias de verão. Pouco saía de casa na infância e foi criado só, sem muito contato com outras crianças, mesmo porque a peste negra isolara as famílias.
Devido à pratica intensiva da religião católica e pelos atos de caridade tanto de Libéria, a mãe como de Jean, seu pai, Antoine foi levado a praticar a caridade com os pobres e induzido a uma vida ascética.
De repente, a tranqüilidade e a tranqüilidade da família Roch de Montpellier foi abalada, A peste, que ia e vinha a cada ano, abateu-se sobre eles. No verão do ano de 1380, Libéria e Jean foram vitimados e morreram. Antoine, contudo, não se contaminou apesar de não se afastar um só momento dos leitos de seus pais. Aos quinze anos, viu-se órfão e completamente despreparado para levar avante a empresa comercial do pai. Seguiu-se um período de tristeza e de incertezas.
Por volta dos quinze anos, (1365) Antoine tomou uma decisão radical: resolveu distribuir todos seus bens aos pobres, deixando uma pequena parte confiada ao tio e partiu em seguida para uma peregrinação a Roma.
A Peregrinação –- 1365 a 1368
De Montpellier a Roma era uma viagem arriscada e demorada, naqueles tempos em que a velha estrutura feudal estava colapsando, milhares de pessoas passavam fome e miséria e, em conseqüência, estradas e caminhos eram lugares sem segurança. Os viajantes deviam viajar em grupos, em caravanas, e, quando podiam, mantinham homens armados e em boas montarias, para defendê-los de possíveis (e frequentes) assaltantes.
Roque (agora era assim que o tratavam) seguiu com um pequeno grupo de peregrinos, do qual faziam partes alguns monges, e que confiavam na força de suas orações para afastar qualquer perigo. Pélas terras francesas, a peste parecia ter amainado sua violência. Mas quando chegaram ao norte da Itália, se depararam de novo com a fatal epidemia. Na cidade de Acquapendente, região do Lácio, próxima a Viterbo, encontrou-a tomada pela peste negra.
Primeiras curas
Estavam já na parte final da viagem, distante de Roma apenas alguns dias, menos de uma semana. Penalizado com as precárias situações dos enfermos, abandonados em locais impróprios, em casas em ruínas e igrejas solitárias, Roch abandonou o grupo de peregrinos, do qual fazia parte, e ofereceu-se com voluntário para ajudar os doentes.
A peste era considerada pelos católicos como castigo divino. Pouquíssimas pessoas que a contraíam sobreviviam. Por isso o abandono a que ficavam submetidas e o medo que inspiravam. Mas Roque não se intimidava. Não tinha conhecimentos de anatomia, nem sabia das técnicas dos cirurgiões-barbeiros, que pretendiam tudo curar com sangrias. Instintivamente (pois ninguém lhe ensinara o uso), manipulava um escalpelo, uma faquinha muito afiada, de dois gumes, com o qual vazava os bulbos, dos quais saia um sangue negro, podre. O cheiro era insuportável. Enquanto exercia suas práticas empíricas de cirurgião, orava e orava. Fazia o sinal da cruz diversas vezes sobre os locais infectados, e rezava. Os doentes tratados por ele foram curados. De Acquapendente voltou para o norte. Viajou para outras cidades, exercendo seu dom da cura. Cesena, Mantua, Modena, Parma... e aldeias circunvizinhas. Onde surgia um foco de peste, lá estava Roque abençoando, ajudando e curando os doentes, revelando-se cada vez mais como místico e taumaturgo.
Assim, passou alguns anos: 1366, 1367 e inicio de 1368.
Em Roma – 1368 a 1371
Roque voltou para o sul, para Roma, objetivo inicial de sua peregrinação. Chegou à Cidade Eterna em 1368 e nela permaneceu até 1371. Foi um tempo de muita oração, recolhimento, meditação e mais curas. A peste ainda remanescia nos arredores da grande cidade, e ele não descansava na luta contra o que considerava uma manifestação do Mal.
Durante os anos que esteve em Roma, seu lugar preferido para as praticas de oração e meditação era o túmulo de São Pedro.
Permaneceu na Cidade de Deus de 1368 a 1371, quando resolveu voltar a sua cidade de origem, Montpellier.
Em Piacenzza – 1372 a 1374
Na viagem de volta para Montpellier, ao chegar a Piacenza, foi ele próprio contagiado pela doença, o que o impediu de prosseguir a sua obra de assistência. Para não contagiar alguém, (embora o conceito de “contágio” fosse descoinhecido na época) isolou-se na floresta próxima daquela cidade.
Na floresta úmida, por entre árvores frondosas, imobilizado pela peste e pela auto-reclusão, teria morrido de fome se um cão dono não lhe trouxesse diariamente um pão e se da terra não tivesse nascido uma fonte de água com a qual matava a sede.
O cão pertenceria a um rico-homem, de nome Gottardo Palastrelli, que se condoeu da situação do jovem e percebeu que a presença de Roque era algo estranho, miraculoso mesmo em sua vida, o ajudou até que ele ficasse curado. Como resultado desse ato de caridade, Plastrelli abandonou sua vida de farra e gastança e converteu-se à fé cristã.
Anos de atribulação. 1374 a 1379
Miraculosamente curado, Roque pretendeu regressar a Montpellier, mas foi preso em Angera, próximo do Lago Maggiore. Esta prisão foi determinada pelo Duque de Milão, sob as acusações de ser espião a soldo do Papa e de disseminar a peste. Não se podendo livrar das acusações, passou cinco anos numa prisão até morrer, abandonado e esquecido por todos, só sendo reconhecido depois de morto, pela cruz que tinha marcada no peito.
Antoine Roche, ou Antôno Roque, de Montpellier, morreu na prisão em Milão, em 1379. Tinha então apenas 29 anos.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 3 de dezembro de 2009-
Conto # 579 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS