A Mudança
O relógio da estação marcava exatamente 11 horas da manhã quando o ônibus da Viação Sul Bahia encostou na plataforma. Examinou atentamente a frente do veículo e encontrando o termo SÃO PAULO na identificação do destino meu irmão murmurou: Chegou, é este. Sacou de sua carteira uma nota de “mil cruzeiros” e estendeu em minha direção. Sem compreender o seu gesto, perguntei: O que é isso? Rindo ele disse: É dinheiro, você não quer? Guarde com cuidado que um dia você pode precisar.
Só então eu compreendi a situação. Era uma despedida, estava de partida para alguma cidade longínqua em São Paulo e talvez nunca mais voltasse a ver meu irmão, era uma nota de valor muito alto, o maior que jamais imaginara possuir. Peguei a nota e silenciosamente subi no ônibus como fui orientado. Minha poltrona era ao lado da janela que estava aberta. Meti a cabeça para que meu irmão pudesse me localizar: - De vez em quando me escreva uma carta, ele disse. Pegue o endereço com a mamãe.
Num solavanco o ônibus partiu deixando para trás a cidade de Itabuna na Bahia. O meu irmão acenava, seu sorriso que havia se transformado numa careta foi se apequenando até que não pude mais distinguir. Só então percebi, eram os meus olhos marejados de lágrimas que impediam de continuar vendo aquela imagem que permaneceria vívido (embora desfocado) na minha memória por muitos anos.
Mauá era uma cidade do ABC Paulista que embora pequena se encontrava em franca expansão e tinha vários loteamentos que formavam o seu entorno. Era nesses loteamentos com pouca ou sem quase nenhuma estrutura que se instalavam os novos moradores que chegavam de todo o Brasil.
O bairro em que morava o meu novo pai ficava a cerca de 10 a 15 minutos do centro de Mauá seguindo de ônibus por uma estrada esburacada. Ficava num loteamento recém-implantado, ainda com poucas casas, lama infernal nos dias de chuva e muita poeira nos dias de sol.
Na minha casa não havia água encanada. Ao lado da casa tinha um poço com cerca de 5 a 6 metros de profundidade de onde retirávamos a água que consumíamos. Também não tínhamos bomba de água, de modo que se usava um balde com a corda amarrada e enrolada numa engenhoca para conseguir toda a água necessária. Nos fundos da casa havia um buraco enorme onde era despejado todo o lixo já que não havia serviço de coleta de lixo no bairro.
Aliás, na minha casa não havia nada. Lembro-me como hoje o dia em que cheguei lá pela primeira vez. Depois de dias extenuantes viajando de ônibus, trem e depois ônibus novamente chegamos quando mais um dia terminava. Descemos num local mal iluminado, com várias casas pequenas e seguimos a pé caminhando por uma estrada empoeirada. Subindo uma ladeira, vi após uma curva uma casinha branca com uma lâmpada acesa que emitia uma luzinha fraca amarelada.
Deve ser aquela, pensei sentindo os meus pés cansados pisando no cascalho solto que dificultava a caminhada. A tinta branca e sua localização no alto da ladeira a destacava na escuridão que começava a cair sobre o lugar anunciando a noite que se aproximava. Calados, caminhamos em sua direção até que chegamos diante de uma portinhola de arame farpado. O homem abriu a passagem para que entrássemos e só aí percebi que aquela não era a nossa casa. Ao lado dela havia uma depressão e descendo por um caminho íngreme, escondido pela escuridão havia um barraco de tábuas coberto por um telhado de barro.
Era essa a minha casa, um barracão de tábuas, piso de chão batido escondido abaixo do nível da rua. O barraco era enorme e construído em dois níveis por causa da declividade do terreno. Nos fundos, dois degraus abaixo, ficava a cozinha que abrigava uma mesa enorme com dois longos bancos em cada lado, um armário e uma pia improvisada de madeira sem torneira, tinha ao seu lado dois latões cheios de água. Ainda nos fundos, estrategicamente próximo da cozinha, ficava o quarto do casal onde dormiria a minha mãe com o seu novo marido. Na frente, havia três quartos em torno de uma área que servia de sala de estar, mas que servia também como sala de trabalho, vez que havia uma máquina de costura, uma mesa enorme com algumas cadeiras, onde se amontoava várias peças de roupas inacabadas.
Num dos quartos havia uma cama de solteiro e um beliche cuja parte superior estava reservada para mim. Na parede, pendurada num prego, havia um candeeiro a querosene, mas havia a luz, a luz elétrica de lâmpadas incandescentes emitindo uma luz amarela estava espalhada por toda a casa. Não havia geladeira, nem eletrodomésticos, era apenas as lâmpadas de iluminação e um rádio de quatro faixas que emitia um som agudo mas compreensível, ora baixo ora estridente conforme o sinal que oscilava ao sabor do vento e do clima.
Havia a luz elétrica, e a luz elétrica transformava a noite em quase dia e embalava o coração de menino que eu era. Essa luz elétrica maravilhosa que havia nas cidades havia também em minha casa. Agora podia ficar acordado a noite toda se quisesse, podia ler a noite toda ou fazer qualquer coisa pois a escuridão só existia lá fora. A mudança na minha vida começou com a luz elétrica.