Sérgio Alberto, o Milagre Brasileiro

O copo de whisky ainda tinha um pequeno fio de líquido amarelo ouro com o derradeiro pedacinho de gelo que acabou de se desvanecer quando o interfone tocou. O homem deitado no quarto de hotel tomou um pequeno susto, havia caído no sono naquela hora da tarde. Com a toalha enrolada no quadril, pele pega o telefone e fala com a portaria. “Sim, deixa ele subir”. Ele estava com o cabelo levemente molhado e já colocava uma calça social, quando ouviu duas leves batidas na porta. Adverte, “espere um minuto, por favor”.

O senhor de cerca de 70 anos tem ao seu redor alguns objetos que ele havia levado em duas grandes malas para decorar o quarto, que seria seu local de moradia nos três dias deste final de semana que apenas começara. Na escrivaninha, ele havia deixado uma dúzia de fotos e um quadro em que ele aparecia em cenas de glórias antigas de sua época de juventude e início da fase adulta. Numa das fotos ele tinha seis mulheres ao seu redor, três em cada lado, e as abraçava sedutoramente, mandando um beijinho para a câmera fotográfica que o flagrou com o cabelo bem desenhado de fios castanhos alinhados, os olhos brilhantes e terno preto impecável. O quadro de quase um metro de altura, posicionado no centro da parede do quarto, era seu rosto de perfil com chapéu enviesado na testa e aparecendo apenas a extremidade superior de um microfone. No canto esquerdo do quadro estavam impressos três disquinhos de ouro, e acima em letras garrafais anunciava, “SÉRGIO ALBERTO, o Milagre Brasileiro”.

Quando o homem abre a porta, dois minutos após improvisar um penteado, ele vê um rapaz com cerca de 25 anos. “Olá, sou o Júnior, o estudante de jornalismo, cheguei um pouco mais cedo hoje, não sabia se podia, e, bom...”. Sérgio Alberto estava ainda embebido pelo sono desperto, olhou para o relógio de pulso e retrucou: “É, digamos que você esteja um pouco adiantado, mas são os nossos tempos, esta juventude tem pressa mesmo”. Sérgio sai da porta e caminha até ao pequeno sofá a poucos metros da entrada, ele joga a toalha e a bermuda para o lado da cama. “Júnior, não é? Pode entrar mas não repare na bagunça, ainda não tive tempo de me ajeitar”.

Júnior entra e vê ao fundo o grande quadro, assim como alguns ternos empilhado numa pequena estante e um jarro de flores, com rosas brancas e vermelhas adornando o ambiente. “Então, senhor Sérgio. Eu sou o rapaz que te ligou para a pesquisa. Estou fazendo uma...” “Senhor está no céu, me chama de Sérgio Alberto, ou Sérgio, como quiser”. “Então Sérgio, eu queria é, queria uma entrevista para meu tema de pesquisa sobre...”. “Você me disse que era sobre música e cantores antigos. Bom, eu sou antigo, e minha a música é mais ainda, vamos lá às perguntas!”.

Júnior fica surpreso com tamanha iniciativa. E abre sua mochila tirando um pequeno caderninho de dentro, assim como o gravador digital de mão. Sérgio fita-o e pede para dar uma olhada nas perguntas antes. “Olha Sérgio, pode até olhar, mas não é nada muito difícil não, só o que você acha da música hoje, como era a música nas décadas de 60 e 70, e o que mudou de lá para cá?”. Sérgio coça o rosto, e olha para o rapaz já preparado para a primeira rodada. Ele vai até a porta, a encosta, e pede só um tempinho para servir-se de mais uma dose. “Whisky, você gosta?” “Não, obrigado, não sou muito das bebidas fortes.” “É, são os rapazes de hoje”, brinca Sérgio. “Pode sentar ali no sofá, posso fazer daqui?”, e indica uma pequena mesa e cadeira que ficavam logo na entrada atrás da porta. “Claro, Senhor Sérgio, eu boto o gravador em cima da mesa. Desculpe, Sérgio né.”

Sérgio olha para ele com um leve sorriso, e gosta de ver o rosto do rapaz levemente corado, o que supõe o respeito do jovem jornalista pelo cantor, supostamente uma demonstração de nervosismo de menino, pensa Sérgio. “Mas porque você quis fazer um trabalho sobre gente velha e músicas ultrapassadas?”, agora Sérgio o encara de forma mais áspera. “Eu acho que no nosso país temos muitas canções e cantores de muito sucesso e de excelente qualidade, mas as pessoas da minha idade não os conhecem”. “Mas porque elas deveriam conhecer?”. Sérgio colocou Júnior numa enrascada, os olhos do rapaz piscavam e ele tenta balbuciar uma resposta quando o cantor emenda, “Poupe sua resposta para a sua tese, vamos lá, daqui a exatamente duas horas começa meu show, pode ser o último. Vamos começar isto”.

Sérgio se considerava um cantor arruinado. Com grande sucesso de músicas românticas, interpretando sambas canções, boleros e bossa novas no seu auge em plena década de 60, ele perdera toda a sua reputação no final da mesma década, quando aparecia a cada semana nas manchetes dos jornais de fofocas com novas namoradas, ex-mulheres e amantes que denunciavam agressões e baixarias. Eram clínicas de reabilitação de drogas e da dependência de álcool, suas frequentes brigas em casa noturnas, e suas inconsequentes troca de farpas e acusações com jornalistas, que ele negava atender, além das explosões agressivas até eles pararem de procurá-lo, em fins dos anos 70. As músicas românticas deram lugar ao rock e as novidades das guitarras elétricas, o que Sérgio odiava, e foi o que decretou os novos tempos da música brasileira. “Eu até fiz algumas grosserias, mas nada mais grosseiro que este tal de rock e suas barulheiras”, defende-se Sérgio. Em 1990 Sérgio já estava endividado, sozinho, entrando na velhice bastante aborrecido e com poucos recursos, com suas ex-mulheres e suas ex-gravadoras.

“E seu envolvimento em muitas brigas públicas com suas namoradas e com os artistas da sua época, o que se passou naquele tempo?”. “Olha, posso te dizer que namorei demais. E de todas as cores e todos os cantos. Brancas, cearenses, negras, gaúchas, orientais, cariocas. Foi um tempo bom”, ele cai na risada. “Os artistas sempre são vaidosos, acham que sua carreira está sob seu controle. Quando atingimos o sucesso, achamos que ele é duradouro, e que nós nunca sairemos da crista da onde. Daí vem as mulheres, as festas, os convites, os muitos amigos que aparecem e as porcarias”. “Quais porcarias você fala?”. “Isto passou. Não quero falar... Mas podemos dizer que tive meu período com consumo de alguns tipos de drogas. Das mais leves às mais pesadas. Mas não vou contar sobre isto hoje não”. Ele leva o copo de whisky na boca, e degusta um gole com os olhos fechados, depois ele abre levemente a boca, como se estivesse sentindo em cada papila o gosto do malte e do álcool penetrando seus poros. “Agora minha droga é esta, a melhor droga. A irrelevância”.

Depois de meia hora de entrevista em que Sérgio expôs sua contraposição ao rock e à guitarra elétrica, sua época de auge e a perda da maior parte do seu patrimônio em projetos de álbuns seus e de outros cantores que ele produzira e que fracassaram rotundamente nos anos 80, ele levanta e como de susto lamenta ao dar uma leve olhada para o relógio, “Ih, acho que estou atrasado”.

Júnior olha para o caderninho com o roteiro de entrevista, e ele nota que não havia chego sequer à metade do programado. Quando ele levanta a cabeça, Sérgio já está de frente para o espelho com o pente entre as mãos arrumando cuidadosamente seu cabelo com um gel fixador, a gosma reluzente já brilhava em sua mão direita.

Júnior não retrocede, ele precisa indagar pelo menos outras coisas importantes. Ele pede para realizar as últimas perguntas. “Se eu puder responder enquanto me arrumo para o show?” Júnior concorda e manda uma das derradeiras. “E o que o Sérgio Alberto, das mulheres e das multidões, tem a dizer sobre os cantores atuais?”. “Sobre eles? São ruins, prepotentes e não cantam mais canções com boa melodia e com letra que tem alguma mensagem significativa, verdadeira. Nosso Brasil está em péssimas mãos, esta geração de cantores e compositores merecia cadeia”, finaliza. “Mas o que o senhor entende por boas canções?”. “São aquelas músicas que tem seu caráter. Elas têm vida própria e só são belas se quem os interpreta ter boa técnica e o feeling apurado para senti-las e dizer cada um de seus versos de forma correta, trabalhando com coração e com consciência musical. Saber exatamente cada verso que está cantando, sentir aquilo e ter ideia de que cada nota musical dada é coerente com uma linha melódica, com um sentimento, com o todo da canção. A canção é um organismo vivo, e precisamos cuidá-lo, fazer carinho nela, e não chicoteá-la, gritar com ela, agredi-la, como muitos fazem. Hoje tudo é feito para o comercial de tevê”.

“Você teria como citar um cantor de hoje que te agrada?”. “Não. Quer dizer, tem, poucos, mas tem. Aquele menino que veio do interior de São Paulo e que cantava aquela música...” Bléééé. Era a campainha. Aparece por trás da porta um homem engravatado e com uma pasta cor amarela escura nas mãos, ele rapidamente entra pela porta do quarto que foi aberta apenas com um leve girar da maçaneta por Sérgio. Afobadamente ele exige, “Sérgio Alberto, você não está pronto ainda? Lá no salão do hotel já estão algumas fãs suas, aquela senhora, a Nair já está por aqui com suas namoradinhas de noventa anos”, e solta uma extensa risada. “Vamos lá, os músicos já chegaram, e o salão ainda está pela metade, mas o público quer te ver. Me falaram que tem até uma repórter da imprensa por lá. Eu sabia que você estava bebendo de novo. Sééérgiooooo. Mas olha só, vamos indo”.

Sérgio Alberto vira de costas para o seu agente, e mostra para Júnior seu novo terno em alto estilo, um veludo azul marinho com uma bonita gravata borboleta em tonalidade escura e uma camisa branca. “Estou ou não estou um galã?” Júnior concorda com Sérgio e pergunta, “Não queria lhe atrapalhar, podemos marcar o restante para outro dia, e se eu puder ver o seu show hoje?”. “E ainda tem mais perguntas? Mas para que tanta pergunta para um velho acabado como eu.” Sérgio dá um tapinha nos ombros de Júnior, que pela primeira vez vê em Sérgio uma leve tristeza nas palavras. Sérgio completa: “Vamos lá, você vai conhecer minhas fãs, parece um asilo geriátrico! Mas eu ainda não botei as fraldas nelas”. Ele olha para o agente já entrando no corredor e para na entrada da porta, como se fosse voltar. O agente discorda com o cabeça, e dá um leve sorriso. “Mas olha só Júnior, as músicas são ruins tá, você já está sendo avisado. Elas dão sono, vontade de sair correndo para vocês jovens. São desatualizadas, chatas, piegas, mas se mesmo assim você quiser, pode ir lá para fundamentar seu estudo da velharia e seus estranhos costumes”. Num passo, Sérgio ruma para o corredor do hotel.

A porta do quarto se fecha, os passos de Sérgio martelam no chão do corredor, junto com seus dois seguidores. São passos pesados e desajeitados de quem já caminhava com um pouco de dificuldade. As intercaladas batidas no chão de parquet com as solas dos sapatos envernizados se esparramam pelo ambiente como estrondos que se sucediam em ecos pelo corredor, e se dissipavam no ar para o retorno de outra batida que tilitava o chão de forma cada vez mais desafinada.

O gravador de Júnior seguia em cima da mesa do quarto, e registrava agora murmúrios ao longe causados pelo aumento da distância das vozes humanas e dos passos, até entrar num contínuo silêncio por mais algumas horas até morrer a bateria.