Como meninos idealistas viram velhos corruptos
Anos 1980. Zezinho é um jovem cheio de idéias, cheio de convicções, com vontade de mudar o mundo. Ele e seus amigos do grêmio estudantil ficaram sabendo da fundação, nas grandes cidades do Brasil, de um partido novo, o Partido dos Operários. Depois de organizar algumas reuniões numa sala que um sindicato emprestou, conseguiram fundar um diretório local. E aí começou a militância.
Inicialmente, os jovens do PO eram vistos pela população local com um misto de comicidade e admiração. Para uns, parecia ridículo aquele bando de guris tentando ficar barbudos (alguns ainda sem barba cerrada), com palavras de ordem fora da realidade. Para outros, a imagem de jovens, sem chance eleitoral alguma, lutando por um mundo melhor era algo poético, bonito de se ver. Mesmo assim, ninguém os levava muito a sério em termos de voto.
Lá pela metade da década, Zezinho, já casado, dava duro em seu trabalho para ganhar o sustento da família, formada por ele, a mulher e dois filhos. Mesmo assim ainda encontrava energias para ir às reuniões do Partido dos Operários no final de semana, participar de atos, campanhas de filiação. Brigava pelo pão de cada dia, enquanto brigava por seus ideais. A mulher, que ao conhecê-lo achava aquilo tudo muito lindo, começava a ficar de saco cheio.
- Homem de deus, larga de mão esse PO que isso não está te dando nada, só te dá trabalho!
E a todas estas, Zezinho tentava argumentar. Em vão. A esposa argumentava que, se Zezinho dedicasse o tempo que era despendido com o partido em outra atividade, poderia estar “melhor de vida” como seus amigos que largaram dessa vidinha há alguns anos.
Mas Zezinho continuava militando. Toda semana ia à reunião com suas roupas surradas e seu Corcel velho caindo aos pedaços. Um dia, o capitalismo iria ruir e de seus escombros, um novo mundo iria nascer.
Um dia, o PO elegeu seu primeiro vereador na cidade. Zezinho até comprou uma cidra e estourou para comemorar. Mal sabia ele que isso só daria margem a novas exortações de sua esposa contra o envolvimento político:
- Viu? Tu estás te matando para os outros se darem bem! O Fulano se elegeu, e o que tu vai ganhar com isso?
Anos 1990. O Partido dos Operários cresceu na última eleição, e agora vai, pela primeira vez, disputar a Prefeitura da cidade com alguma chance – ainda que remota – de vitória. O partido ainda é o mais pé-rapado dentre as grandes legendas da cidade, não tinha militância paga (e nem teria como pagar), mas tinha um exército de militantes apaixonados.
Naquele ano, Zezinho pediu ao patrão para antecipar as férias: ao invés de tirá-las no verão para levar a família à praia (uma prainha modesta, na qual passavam todos os verões contando moedinhas até para dar picolé ás crianças, mas que mesmo assim era boa), resolveu tirá-las no último mês de campanha, para poder caminhar pela cidade e ajudar seu partido. Com isso, Zezinho realmente ganhou de vez o ódio da mulher e o desprezo das crianças, que ao saberem desta decisão passaram duas horas chorando em volta do pai.
A campanha eleitoral prosseguia, com os partidões tradicionais despejando fortunas em brindes, churrascadas, placas, pintura de muros, e o PO se virando como podia. O PO dependia da doação de dinheiro de seus militantes e até o material de campanha era VENDIDO ao invés de ser dado de graça, como ocorria nas demais siglas.
Lá pelo final da corrida, haviam placas do PO como nunca houve em nenhuma eleição anterior. As pesquisas davam ao PO um terceiro lugar que poderia converter-se em segundo nos dias finais da campanha, se a militância mantivesse o empenho. Alguns analistas políticos simpáticos ao partido sentiam, lá no fundo do peito, uma vertigem. Uma intuição, um vislumbre de que, numa grande “zebra”, num milagre, daqueles típicos de novela, os barbudinhos do PO poderiam até mesmo ganhar a eleição.
Estavam certos. Contrariando as pesquisas de poucos dias antes, o Partido dos Operários acabava de eleger seu primeiro prefeito na cidade.
O novo governo tinha um problema para resolver: o partido era ainda pequeno, concorrera sem aliados, e não tinha quadros (ou seja, pessoas) suficientes, com formação específica em cada área, para preencher as secretarias, direções e chefias de órgãos municipais. Iria, então, apostar na sua militância tradicional, nos fundadores do partido.
Zezinho, agora Secretário Municipal, passava a ganhar exatamente OITO vezes o seu antigo salário de empregado na empresa da qual pedira demissão assim que o resultado das eleições saiu. No novo cargo, começou a trabalhar mais do que nunca, mal aparecendo em casa para dormir e fazer algumas refeições.
Sua esposa, no entanto, não reclamava de nada. Numa virada psicológica de 180 graus, passara a achar ótima a paixão política do marido. Quando questionada sobre o assunto, parecia ter esquecido do passado e dizia sempre ter apoiado o fervor ideológico de Zezinho, “pois sabia que a luta não era em vão”. Na prática, Zezinho continuava indo à Prefeitura com seu Corcel velho, pois o poder não lhe subia à cabeça. Quem torrava seu gordo ordenado era a mulher, que tomara um “banho de loja” logo no primeiro mês do governo do PO. Em seguida, tirou os filhos do colégio estadual e matriculou-os no particular. Na vila onde moravam, passou a desfilar de madame. Poderosa. Passou a freqüentar o salão de beleza. Até faxineira contratou.
Os filhos passaram a ter cada um seu quarto: antes dormiam amontoados em um quartinho pequeno, mas com a nova renda, a família conseguiu fazer um puxadinho e aumentar o existente, dando à criançada confortos até então sequer sonhados.
De uma hora para a outra, a família via-se cercada de amigos. Todo mundo queria privar da intimidade da família mais importante da rua. Os parentes também começaram a aparecer. Zezinho antes era o pobretão da família, que chegava às festas de Natal com aquele carrinho caindo aos pedaços, chegando a contrastar com o padrão de classe média de seus irmãos, primos, cunhados. Agora, apesar de o carrinho continuar o mesmo, Zezinho era a celebridade de qualquer ocasião.
Toda essa mudança começou a ter efeitos sobre a mente de Zezinho.
Continuar com o mesmo visual era uma questão de princípios, de mostrar que o governo do PO estava ali para servir ao povo e não para enriquecer seus membros. Mas, de repente, esta filosofia de vida começou a parecer meio exagerada para Zezinho. Afinal, estava ficando mais velho e não poderia mesmo manter o mesmo visual de garoto rebelde para sempre. Um dia, foi a um bom salão, raspou a barba, fez um corte de cabelo mais sóbrio.
Todo dia, vestia-se para ir ao trabalho e sentia-se estranho ao olhar no espelho. Aquele rosto limpo, com ar digno, aquela cara de homem sério, de estadista… e vestido como se fosse um hippie… comprou umas roupinhas novas, uns três ternos para usar em ocasiões que exigem maior formalidade. Afinal, já percebera que seus colegas de partido e de governo apareciam bem vestidos nas fotos de inaugurações, e ele, sempre molambento. Não dava mais, realmente. Não era vaidade. Era exigência do cargo, ora bolas.
Outra providência a ser tomada era o tal do carro. O Corcelzinho valente de sempre, depois de sofrer com a buraqueira das vilas e da zona rural em tantas campanhas, estava entregando os pontos. Zezinho queria trocá-lo por um carro simples, e menos velho. A esposa saiu junto para dar uma olhada nas opções. A cada boa opção vista, a frase dela era a mesma:
- Mas se tu vais comprar esse carro aí, bota mais um pouquinho de dinheiro e compra um melhor, mais novo, que vai te incomodar menos!
Zezinho ia concordando, de loja em loja, de carro em carro. Acabaram comprando um carro zero, completo, bonito, parcelado em 60 vezes. Afinal, aquilo era um investimento para muitos anos, um carro que não iria incomodar tão cedo.
Último ano do mandato do prefeito. A cidade avançara muito, milhares de pessoas haviam saído da exclusão, das zonas de risco, o atendimento de saúde expandira-se muito. Em casa, as coisas também eram outras. Zezinho morava melhor, andava num carro novo, a família toda estava bem vestida, bem calçada.
O salário de Secretário Municipal, a esta altura, já não parecia tão gordo. Não que tivesse diminuído. Mas agora Zezinho tinha os filhos na escola particular, tinha as prestações das lojas, o carnê do carro. Acostumara-se a comer fora, a ir com os filhos a boas praias, a vestir-se melhor, a comer melhor. Pagava mensalidade da academia para a esposa, da escolinha de futebol para o menino, do balé da menina. A vida tornara-se mais cara.
O Partido dos Operários também mudara de vida ao longo dos últimos quatro anos. Foi se aproximando de alguns de seus antigos adversários, para garantir alguma governabilidade, passar projetos no Legislativo. O prefeito iria concorrer à reeleição apoiado por figuras que antes nem passariam perto de uma reunião do PO.
Zezinho sentia-se indignado com essa “venda dos ideais”, e pensou, por um momento, em romper com o PO e ingressar em algum partido mais à esquerda, mais radical. Estava pensando nisso quando chegou em casa… o filho o recebeu exultante, mostrando sua grande novidade:
– Pai! Pai! Olha só! Passei para a faixa laranja no caratê!
Zezinho parou e pensou por um segundo: saindo do partido, deixaria o governo. Deixando o governo, voltaria à vida de antes, ao magro salário de antes. Sendo um sujeito de princípios, a idéia não o assustava nem um pouco: não dava importância ao dinheiro e ao status. Estava pronto para repassar o carrão e o financiamento para outro, e com o dinheiro da entrada comprar novamente um carango velhinho para andar por aí. Não via problema algum em viver com menos, mas…
… logo algumas cenas começaram a passar em sua cabeça, como se fossem um filme. Imaginou o filho guardando a roupa de caratê….
- Agora não está dando mais para pagar a mensalidade, filhão, mas logo que a coisa melhorar tu voltas – diria Zezinho, sabendo, no fundo, que o menino provavelmente jamais voltaria a praticar seu esporte preferido. O filho, dali a um tempo, voltaria a usar roupas doadas pelos primos mais velhos. Imaginou o menino tendo que procurar emprego cedo, desistindo de seus sonhos…
Imaginou a filha indo às últimas aulas do balé, anunciando às amiguinhas da escola…. se despedindo das coleguinhas e indo para a escola estadual, com saudades das antigas companheiras de brincadeira. Imaginou especialmente a cena mais melancólica de todas: a menina brincando no pátio do colégio com as amigas, sabendo que aquelas seriam suas últimas brincadeiras com elas.
Imaginou a esposa, anos depois, ainda guardando com zelo as roupas compradas na época das vacas gordas, usando-as apenas para ir a ocasiões especiais… cada vez mais raras, aliás, pois os amigos vão sumindo, assim como os convites. A mulher envelhecida, amargurada, voltando às lides domésticas sem poder pagar uma faxineira.
Embora o dinheiro e o prestígio não lhe fizessem falta, Zezinho percebeu que destruiria a vida de todos os outros moradores de sua casa.
Resolveu não sair do partido. Ficou no governo. Engoliu, como aliados, alguns dos mais manjados representantes da escória política da cidade, dizendo para si mesmo que aquilo seria um mal necessário para um bem maior: a continuidade do projeto do PO.
Vitória nas urnas, mais um mandato para o Partido dos Operários. O novo governo passava então a promover um certo inchaço da máquina pública, “loteando” cargos para todos os aliados. Logo nos primeiros meses, Zezinho acabou deslocado de sua cadeira de Secretário porque o prefeito precisava acomodar ali um figurão, de outro partido, que iria concorrer a prefeito mas abriu mão para entrar na coligação.
Não que Zezinho, agora rebaixado a diretor de um departamento, passasse a ganhar MUITO MENOS com isso: logo começou a receber diárias de viagem e outras vantagens, que faziam com que ganhasse até mais, na média anual, do que antes.
Mas dali a um tempo, começou a perceber umas movimentações estranhas, umas contas que não fechavam… teve a plena convicção de estar detectando um caso de corrupção. Falou com o amigo prefeito, falou com o resto do pessoal, mas assim como ele próprio, ninguém sabia muito bem o que fazer. Se ESTOURASSEM a história toda, o governo todo seria rotulado como CORRUPTO e a imagem do PO, um partido que jamais estivera envolvido em nada escuso, seria maculada. Mas se não fizessem nada, estariam sendo coniventes.
A solução foi a seguinte: mexeram no secretariado, trocaram todos os envolvidos de lugar, para ver se a coisa parava por aí.
Pouco tempo depois, novas movimentações suspeitas começaram. Novo troca-troca na equipe. E nova “recaída”. Dali a um tempo, bateu um cansaço: o volume da roubalheira era pequeno, e deixar que ela seguisse era menos danoso ao andamento dos trabalhos do governo do que esse constante mexe-mexe nas Secretarias. Zezinho concordava com esta tese, aliás.
Dois anos depois da reeleição, e agora encontramos Zezinho já acostumado com o ambiente do governo, tolerante às pequenas safadezas dos aliados, acomodado em sua posição, e arrecadando além do salário, todos os adicionais que a lei lhe permitia. Nesse momento, mais uma vez o acaso histórico iria mexer com sua vida.
O Partido dos Operários, naquele ano, ganhou as eleições para o Governo do Estado. Zezinho apoiara um candidato a deputado que acabou eleito, mas não foi para a Assembleia Legislativa: na composição do novo governo estadual, acabou de Secretário Estadual de alguma coisa. Zezinho recebeu o convite para ir junto compor a equipe da pasta, e aceitou. De diretor na Prefeitura, a assessor numa Secretaria do Estado. Salário maior, mais prestígio, tudo.
Logo ao chegar ao novo cargo, Zezinho descobriu que ali as empresas prestadoras de serviços para o governo pagavam propinas para articular vitórias nas licitações. Recusou-se a recebê-las. Mas então ficou diante de uma nova sacanagem: impossibilitadas de comprar a decisão dos processos licitatórios, as empresas começaram a fazer pressão sobre o deputado, o governador… e Zezinho percebeu que a malandragem iria acontecer com ou sem sua ajuda. Começou a sentir-se o único trouxa no planeta dos espertos.
Um amigo, deputado estadual de outro partido que já governara antes, chegou e deu-lhe o argumento que faltava para fazer sua cabeça:
- Cara, todo mundo faz, e se tu não fazes, alguém vai fazer. Isso aí funciona assim há décadas, e se tu não dança conforme a música, eles te substituem por alguém que dance. Não dá para bancar o menino idealista e ingênuo numa hora dessas. Além disso, tu já fizeste tanto pela tua cidade, pelo teu estado… esse governo não vai durar para sempre, então tu tens que ter um dinheiro bom para investir, garantir a tua velhice.
Na semana seguinte, a turma da mala preta apareceu de novo na Secretaria, oferecendo um “presentinho” a Zezinho. Ele olhou para os espertalhões, e ainda não muito seguro do que estava prestes a fazer, disse-lhes:
- Eu andei pensando: de quê adianta ser santo numa terra de pecadores? Afinal, uma andorinha só não faz verão. Estou certo ou estou errado?
Apertaram as mãos. Zezinho abriu um sorriso. Todos na sala sorriram.