DEMÉTER E PERSÉFONE

Entro em casa. Minha avó dorme na cama. Olho e vejo que deste sono ela jamais voltará. Ela partiu e não esperou para que segurasse sua mão na última hora. Era linda, minha avó sempre foi linda. O corpo ainda não continha rigidez. Morreu um pouco antes que eu chegasse e a abraçasse e segurasse sua mão. Está suave como sempre foi em vida.

Tirei sua roupa. Passei um pano úmido com um óleo perfumado em todo seu corpo. Esfreguei com delicadeza cada ruga, investiguei cada centímetro dela. Penteei seus cabelos prata. Não tinha percebido que as unhas dos pés passaram um pouco da medida. Ela adorava usar esmalte vermelho nas unhas das mãos e assim as pintei, vovó.

Ela sempre usava um pouco de maquiagem e nunca podia ver uma mulher sem batom.” Vá passar um batom”. Coloquei o batom pêssego, ficou muito claro, reforcei com o meu vermelho e deixei suas maçãs do rosto bem rosadas. Guardei bem guardado seu batom em sua mão. Sem batom, vovó não era ela.

Cobri seu corpo com seu Dior, sempre o cheiro dela. Econômica, quando me emprestava ela dizia: passe só um pouquinho. Coloquei suas meias de nylon, seus melhores sapatos, seu melhor vestido e a gargantilha de pérolas que usava até mesmo em casa.

Não quis dividi-la com ninguém: hoje seríamos somente ela e eu. Aviso à família amanhã. Deitei ao seu lado na cama e coloquei um cobertor sobre nós. Sentíamos frio agora. No seu aconchego lhe fiz cafunés e acariciei seu rosto.

Começamos a nossa conversa dos tempos, nosso último momento. Fiz o relatório daquele dia como fiz em todos os dias da minha vida a seu lado. Ela era sempre uma boa ouvinte. Tudo fluía ao redor daquela mulher. Ela não andava, deslizava suave. E chegamos ao momento inicial em que virei um ovo do frágil encontro de gametas de dois adolescentes drogados, chapados, inconsequentes, inconscientes... Minha mãe só tinha 15 anos e do garoto, minha mãe nem trouxe o nome.

Minha avó, com a sabedoria do mundo, cuidou da filha e eu nasci saudável. Minha mãe desaparecia, reaparecia, desaparecia e cada vez estava mais detonada. Há muito não sabemos dela. Será ainda viva? Meus dois tios amanhã vão se assustar quando eu avisar que encontrei vovó morta pela manhã, mas hoje não irão compartilhar deste adeus.

Tenho 22 anos e não terminei minha faculdade. O que decidirão meus tios? Vão logo resolver a parte mais prática da morte e logo venderão a casa. Tenho na certa algum direito pelo lado da minha desconhecida mãe.

Lembra daquele casebre que você comprou na praia, vó? Não tinha luz, nem água encanada e nós dormíamos em rede. Amava as garrafas que você usou para substituir algumas telhas e não conseguia dormir encantada pela luz da lua. E você ficava em vigília até que eu pegasse no sono.

Condescendente vovó, continente sempre, confidente, confiante... amorosa vovó! Dormimos aconchegadas e já não tenho certeza se amanhã o dia acontecerá e se levaste contigo a minha poesia.

Beta Maria Lopes
Enviado por Beta Maria Lopes em 27/11/2014
Código do texto: T5050479
Classificação de conteúdo: seguro