552-ZIQUIZIRA DE TURISTA ou Brasil, Nunca Mais!

Quem é padrinho de criança pobre, através de instituições especializadas, sabe do empenho que existe no sentido de que os padrinhos conheçam seus afilhados. O intercâmbio de cartas entre padrinhos, madrinhas e afilhados e afilhadas é intenso. Além da correspondência, há também todo um serviço de apoio aos padrinhos que desejam visitar os afilhados.

É uma prática que muito contribui para elevar a auto-estima das crianças apadrinhadas, ao mesmo tempo em que coloca os padrinhos em contato direto com o afilhado, com o local onde mora ou com as suas condições de vida.

Jean-Claude Michelin era (acho que ainda é, apesar de tudo) padrinho de Ronaldo da Silva. Jean-Claude morava em Paris e Ronaldo em Fortaleza.

Um dia, Jean-Claude perguntou à esposa:

— Marie, que você pensa de irmos ao Brasil?

— Brasil? Com tanta coisa linda pelo mundo, justamente o Brasil? Que é que tem lá? — Era evidente a ignorância da esposa sobre o Brasil e não entendia o interesse do marido.

— Podemos juntar o útil ao agradável. — esclareceu Jean-Claude. — Fazemos turismo, conheceremos às melhores cidades e visitamos nosso afilhado Ronaldinho.

Não foi difícil convencer a esposa, que se animou com a idéia de visitar o afilhado.

— Ah, bom! Levaremos presentes para ele e a família.

A instituição que intermediava o intercâmbio entre afilhado brasileiro e padrinho francês providenciou algumas facilidades ao casal de visitantes. Ao chegarem ao Recife, um funcionário os esperava no aeroporto e os guiou até o hotel. No dia seguinte, de manhã, estava à porta do hotel, com uma van, para levar Jean-Claude e Marie.

— Como o senhor sabe (o funcionário falava bem o francês), Ronaldinho mora em uma favela, distante do centro, porém próxima de uma das praias mais lindas do mundo: a Praia do Futuro. Levem roupas de praia, pois podem passar o dia lá.

A van os deixou onde terminava a rua e começava uma viela estreita, um caminho de areia que se adentrava pela favela. Jean-Claude e Marie jamais tinham visto coisa igual e nem tinham idéia do que era uma favela brasileira. Mesmo assim, com dificuldades, foram caminhando, orientados pelo guia, até que chegaram a um barraco onde residia Ronaldo e sua família: a mãe, dois irmãos e três irmãs.

A chegada do casal foi a novidade da manhã, que se alastrou pela favela. Quando Jean-Claude, Marie e o guia chegaram ao barraco da família de Ronaldinho, uma pequena multidão curiosa já estava lá. O barraco era minúsculo, como é normal em se tratando de barracos de favela, a família numerosa estava toda lá, e não houve um minuto sequer de privacidade, o que era tão desejado pelos padrinhos.

A visita foi atropelada pela presença de tanta gente estranha e a distribuição de presentes se tornou constrangedora. Afinal, só haviam trazido para Ronaldinho, os irmãos e irmãs e a mãe. Mas os “vizinhos” que estavam à porta (e até dentro do barraco) ficaram com aqueles olhos compridos, de expectativa e, em seguida, de frustração.

O casal, sem jeito, abreviou a visita e logo estavam de volta à van.

— Se vocês quiserem, posso deixá-los aqui na praia. Vocês passam o dia e venho buscar o senhor e a senhora ao entardecer. — Sugeriu o guia.

Eles ficaram. Alugaram uma sombrinha de praia, duas cadeiras e passaram horas agradabilíssimas ao sol, entrando no mar e comendo os mais variados petiscos que vendedores passavam constantemente, apregoando:

— Camarão no espeto! Olha aí o camarão assado!

— Água de coco! – Água de coco geladinha!

Já bem de tardezinha, ansiosos por aproveitarem o máximo aquele dia, antes do retorno do guia com a van. Descontraídos, cometeram o descuido de entrarem os dois ao mar, deixando suas roupas e pertences sob a sombrinha.

Ficaram surpresos quando voltaram, ao notarem as roupas espalhadas e remexidas. Claude procurou logo pela carteira e não a encontrou.

— Fomos roubados! Merde! Levaram minha carteira, com o dinheiro

Por mais desagradável que fosse a situação, Jean-Claude ainda tivera sorte: levara na carteira apenas algumas notas de cruzeiro, o suficiente para passar o dia. O guia havia recomendado:

— Não precisam levar documentos e dinheiro, só para o dia. — Avisara o guia, antes de saírem do hotel.

O casal ainda estava atarantado, sem saber o que fazer, quando viram a van encostando-se no meio fio da calçada. O guia desceu do veículo e veio na direção deles.

Em poucas palavras, entremeadas de muitos palavrões, Jean-Claude contou o que havia acontecido.

— Infelizmente, me esqueci de avisar vocês que não deviam deixar os pertences sem que um dos dois estivesse por perto.

Mas, por pequeno que fosse o prejuízo, os franceses não gostaram nem um pouco, principalmente (conforme o guia pode observar) por terem suas roupas revistadas por mãos estranhas.

O encanto com Recife se dissipou no ato.

— Vamos para Salvador agora, Jean. — Pediu a esposa.

Tomaram o avião para Salvador no dia seguinte, de manhã. Um dia lindo, que prometia uma viagem tranqüila e confortável. Mas estava escrito diferente.

Depois de meia hora de vôo, acendeu-se a luz vermelha mandando afivelar o cinto de segurança. A voz do comandante anunciou:

— Senhores passageiros, por condições técnicas, faremos um pouso no aeroporto de Brasília.

Como o vôo Recife>Salvador era direto, esta emergência configurava alguma coisa grave. E era. Antes de pousarem, o avião balançou perigosamente, e inclinou-se de lado. Os passageiros sentiram que a manobra de aterrisagem não fora normal. Jean-Claude e Marie, que não entendiam os murmúrios e sussurros entre os passageiros, ficaram apavorados, pois sequer imaginavam o que estava acontecendo. Perguntando a uma das comissárias, souberam que o avião sofrera uma pane em um dos motores e seria substituído.

Em terra, esperaram dentro do aeroporto por mais de uma hora, até que outro avião substituiu o que iniciara o vôo.

Embarcaram no avião substituto e dentro de mais quarenta minutos desceram em Salvador.

Chegaram a Salvador no meio da tarde. Hospedaram-se em hotel no centro, na Rua Chile. Um hotel antigo, porém com bons quartos e serviço de categoria internacional. Repousaram até pelas oito, quando saíram para jantar.

A refeição foi excelente, bem ao gosto de Jean-Claude, que gostava de experimentar tudo e, diferente de seus compatriotas, saboreava com prazer pratos bem temperados, apimentados.

Após o jantar, iniciada com caipirinhas e arrematada com um cálice de licor de jenipapo, o casal voltava, a pé, feliz e alegre para o hotel. Não se deram conta que eram seguidos por dois homens, que deles se aproximaram num trecho de rua mal iluminado e de nenhum movimento.

A abordagem foi rápida. Os assaltantes agiram com presteza e rapidez de profissionais. Antes que pudessem dizer non, non, tinham sido despojados de tudo o que representasse valores: Marie ficou sem os brincos, colar e anéis, e Jean-Claude, sem a carteira, onde portava todo o dinheiro e os documentos.

Os assaltantes desaparecem na noite, sem que uma palavra fosse dita pelos bandidos. Ninguém testemunhou o assalto e, portanto, não houve nenhuma ajuda.

Chegaram ao hotel ainda assustados e comunicaram ao gerente o ocorrido. Subiram para o quarto, enquanto a policia era acionada. Cerca de quarenta minutos depois, foram chamados ao escritório do gerente, onde estavam dois policiais fardados.

Houve certa dificuldade, pois os policiais não sabiam nada de francês. O gerente ajudou no que pode a fim de fazer a comunicação entre eles. No final da entrevista, ficou determinado que Jean-Claude e Marie deveriam ir, no dia seguinte, à delegacia de polícia, onde uma cópia do Boletim de Ocorrência seria fornecida.

No dia seguinte, antes de ir à polícia, Jean-Claude se comunicou com o cônsul francês na cidade e quando chegou à delegacia, um funcionário do consulado já os esperava. Após obterem o documento da polícia, o funcionário lhes disse:

— Hoje é domingo aqui, nada funciona. Aproveitem o dia, e amanhã tomaremos as providências legais necessárias. — Abrindo a carteira, ofereceu dinheiro a Jean-Claude — Eis aqui duzentos cruzeiros, que dá para vocês passarem o dia.

Aproveitar o dia! Como se fosse possível!

O casal passou o domingo no hotel, só descendo para uma refeição no próprio restaurante do hotel. O susto do assalto, juntamente com a impossibilidade de fazerem alguma coisa, os deixou completamente abalados, sem iniciativa.

— Não é possível que nossa viagem tenha se transformado neste pesadelo! — Marie, quase em prantos, aconchegava-se a Jean-Claude.

— Sim, é muito azar. Nada está dando certo. Vamos resolver nossa situação e em seguida vamos embora daqui.

Gastaram três dias — segunda, terça e quarta — para conseguirem os papéis provisórios, a licença para deixar o Brasil e se assegurarem de que os seguros feitos na França lhes garantiriam a reposição dos valores perdidos.

Viajaram na quinta-feira, de volta à Paris.

Chegaram e foram diretos para o escritório de imigração, onde passaram ainda por alguns momentos de tensão.

Enfim, quando entraram em seu apartamento, cansados mas agora aliviados por estarem novamente no aconchego de seu lar, em terreno conhecido, Jean-Claude deixou-se cair no amplo sofá e desabafou tudo o que sentia em poucas palavras:

— Brasil, nunca mais!

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 6 de junho de 2009 –

Conto # 552 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 26/11/2014
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