POR ONDE ANDA SEVIERO

Dos bons tempos que lá se vão, que muita recordação me trás, tenho marcantes lembranças e nunca me esqueço de SEVIERO, moleque sapeca, tal como eu em minha saudosa infância "que os anos não trazem mais".

Esse pensamento que vai e vem voltou-me agora, diante do espelho, enquanto corto a barba que teima, no dia a dia, cobrir minha face envergonhada por eu ter sido testemunha muda da covardia que fizeram com meu pobre amigo, naquele tempo de moleque.

Lembro-me sempre de nosso primeiro dia de aula, na escolinha do bairro rural, logo ali, depois da ponte do Rio Jacuí, na beira duma estrada arenosa, junto a um lindo bosque, antes de cruzar o Rio Neblina, no sentido sul a norte.

Frente à escola havia um pequeno gramado, e o grupo escolar situava-se entre os dois rios: Neblina e Jacuí, que logo à frente se cruzavam. Esses dois rios nada mais são que pequenos riachos, conforme a geografia, mas naquele tempo, ao menos para mim e meus colegas, eram rios grandes, onde a criançada buscava água, levando em baldes nas costas para o pote da escola, enquanto meninos e meninas nadavam pelados antes de começar as aulas.

O primeiro era bastante frio, um tanto lento e mais cheio, enquanto o outro um pouco morno e mais corrente, porém, ambos, ávidos de um dia chegar ao mar, encontravam-se numa bifurcação a menos de dois kilômetros da escola. Durante um bom trecho, não se misturavam, já que um era azul e o outro amarelo, porém adiante, nos fundos do bosque que mencionei, formavam um lago de cor esverdeada e bastante profundo, verdadeiro paraíso de patos e marrecos, em cujas margens um caipira preguiçoso pescava de vara, às vezes, fumando enorme cigarro de palha.

Um pouco mais além do lago havia um campo de futebol, onde a molecada brincava, chutando bola de capotão, ou seja, uma pelota feita de couro de boi e colorida de um amarelo desbotado, enquanto aguardavam a chegada da professorinha primária.

Eu e SEVIERO chegamos à escola um pouco cedo, com sede de conhecimentos, sem os quais não se pode sonhar com as coisas boas deste mundo, por isso, só mesmo estudando, um dia a gente poderia viajar, ir para uma cidade grande, arranjar um bom emprego, andar de automóveis, quem sabe até de avião. Era o que vínhamos conversando no trajeto de casa até a escola.

Tímido, como sempre fui, fiquei só ao lado de SEVIERO, que era maior que eu, mais ousado e muito me encorajava nas caçadas e pescarias pelas margens dos rios, assim como do lago, que àquela hora brilhava como um espelho ao sol de quase meio dia.

- Estamos na escola, - disse-me SEVIERO, dando tapinhas em minhas costas, assim que chegamos e nos assentamos na mureta do pátio escolar.

Embora felizes e animados para iniciar os estudos, mas sendo a primeira vez que pisávamos numa escola, era patente um certo nervosismo em mim e naquele moleque pintado, pois que assim o chamou a professorinha, tão logo o avistou, já que tinha o rosto e o corpo todo salpicado de pintas marrons. Só mais tarde vim a saber que eram sardas, provocadas pela luz do sol em pessoas albinas. Até então eu não tinha percebido isso, mas se a professora falou, acho que está falado. O SEVIERO era um pintado. Foi o que se passou a comentar pelos cantos e em seguida de forma descarada pela turma toda, deixando tristonho o pobre moleque que tinha os cabelos ruivos e o rosto branco e manchado por aquelas pintas amarronzadas.

Antes desse episódio, nunca eu vira alguém mais contente, sendo eu feliz também porque até que enfim eu e o SEVIERO entrávamos para a escola, infelizmente, porém, naquela que a sorte nos reservou. A professorinha era brava, dava reguadas nas cabeças dos alunos, ensinando a primeira lição, mas o pior estava para acontecer, justo na hora do recreio.

Dois moleques grandalhões no palco disputavam uma bola feita de meia, tão suja como a escola, em cuja parede bateu e rolou pela beirada, indo para fora. SEVIERO correu e catou aquela bola de meia entregando-a gentilmente ao goleiro, mas este, descalço e de calças curtas, como, aliás, nós outros, retribuiu-lhe com uma cabeçada no peito. SEVIERO caiu sentado e vieram outros moleques dando-lhe socos na cabeça, enquanto ele se levantava cambaleando e andava para trás, com os cabelos arrepiados, tentando-se esconder atrás de um pé de mandacaru.

Eu chamei a professora, ela me repreendeu: - Você já fez a lição? Voltem todos para a sala de aula!

Todos ficamos em fila e foi assim que começou para mim a lição da escola da vida, que de início o grupo escolar já ensinava, além de letras e cálculos, demonstrando que o homem é lobo do seu semelhante.

Sentei-me na carteira e olhei para trás e pude ver com o canto do olho que SEVIERO chorava e me deu uma tristeza enorme que tive de fazer força para não chorar também. Seu caderno estava manchado de sangue, ele escrevia, ou melhor, rabiscava, só que a mestra achou por bem lhe dar uma reguada na cabeça para lhe corrigir da displicência, como justificou. Ele havia sangrado pelo nariz e no final da aula, como se fora um cachorro, saiu enxotado pelos próprios colegas da escola para nunca mais voltar, enquanto para mim terminava a primeira e uma das mais difíceis lições que a vida me tem ensinado.

Dias depois passei na casa de SEVIERO, na esperança de que o convenceria voltar para a escola em minha companhia, revivendo aquele sonho de sermos grandes e livres para enfim desfrutarmos das coisas boas deste mundo. Quem me atendeu foi sua mãe, com aquela saia comprida a estender roupas no varal, falando sem parar.

- SEVIERO tá não, foi pra roça ajudá o pai e os irmãos na paina do argodão. Inté que enfim virô gente aquele bicho saci, meu caçula, que só vevia fazendo arte por aí. O cê é que é moleque de sorte, nasceu fio de sitiante, mas o SEVIERO, coitado, num vai dá pra nada, pruque num teve a sorte que o cê tem. Nasceu aqui na fazenda Capim Fino, que é do dotô Simão, nóis tudo sendo colonos, por isso o destino dele num é o que ele pensava em estudá pra sê dotô também. Pelo jeito deu tudo errado, pois ele vortô chorando da escola e sentou na soleira da porta, olhando pro tempo com os zóios rasos d’água. Nem sei o que conteceu, mas ele disse que num vortava mais pra escola. Aí resorveu trabaiá, o que tá muito certo.

Depois de um mês que havia sumido, SEVIERO veio à minha casa, dizendo que ia se mudar para a cidade e trabalhar de bóia fria, isto é, continuar colhendo algodão na fazenda durante o dia e à tarde indo para casa na carroceria de um caminhão, que fazia o transporte de ida e volta. Viera se despedir de mim, seu melhor amigo, achando que nunca mais iríamos nos encontrar nos desencontrados caminhos da vida. Foi um triste adeus, talvez para sempre.

Naquele tempo eu era criança, mas já sabia aquilatar o valor de uma verdadeira amizade, cuja perda, sobretudo pela forma que ocorreu, até hoje me dói, levando-me a perguntar com os olhos marejando: Por onde anda SEVIERO?