539-SEGREDOS DE BRASÍLIA- Crime sem castigo
BRASÍLIA, sonho de Dom Bosco, idealizada por Niemayer, tornado realidade pela vontade de Juscelino, embelezada por Burle Marx, capital federal por decreto e não por vocação, terra de palácios habitados por presidentes corruptos e vilas miseráveis de trabalhadores honestos.
A impunidade corre solta em Brasília. Não só os crimes de colarinho branco são praticados à vontade, como a corrupção, as infrações de todos os tipos, praticadas por representantes do povo e altos dignitários da república, bem como funcionários em conluio com os patrões, enfim, ninguém é penalizado.
A juventude segue os exemplos dos pais, e crime hediondo têm sido praticados na capital nacional. Manô é um exemplo típico da juventude transviada de Brasília: participou da queima de um índio que dormia na calçada, e só por muita sorte não foi preso nem reconhecido por testemunhas. Assistiu, impávido, quando um morador de rua foi queimado, próximo à Estação Rodoviária.
Com 15 anos, é um rapaz forte, faz academia e pratica esportes violentos. Está constantemente envolvido em brigas com colegas e é salvo da prisão, em primeiro lugar, por ser protegido pela Lei de Proteção ao Menor; e segundo lugar, por ser filho de conhecido senador dos qual os delegados de polícia cagam de medo.
O Senador pai de Manô, cujo nome não será aqui revelado, mora em uma das melhores mansões da capital. A esposa do senador, mulher oriunda do sertão, é uma verdadeira perua da alta sociedade, que não repete vestidos, sapatos nem jóias nas frequentes festas em que comparece. Vaidosa, faz questão de exibir a riqueza que usufrui e que, na certa, não vem apenas das atividades legais do marido. Gasta como ninguém, e faz questão de mostrar que dinheiro não é problema para ela.
A mansão é defendida por grades, cercas eletrônicas, cães amestrados e segurança pessoal. Mas o que é isso tudo, quando ladrão quer roubar? Aliás, dizem que há quatro coisas que ninguém consegue deter: água de morro abaixo, fogo de morro acima, ladrão quando quer roubar e mulher quando quer dar... ninguém segura!
Pois a impenetrável residência do senador estava na mira de dois larápios, que elaboraram o plano perfeito para entrar na mansão.
— Cara, só preciso de uma noite em que todos esteja fora: o senador, a mulher, o filho e as empregadas. — A proposta era de Tião Mutreta ao comparsa Zeca 38. — Entrar e sair, dou jeito. Vamos ficar de atalaia.
Zeca 38 desconfiava da capacidade do companheiro,e se recusou acompanhá-lo.
— Então, vou sozinho.
O dia, ou melhor, a noite tão esperada chegou. O casal estava na festa de reveillon de portentoso empresário. Manô, o filho, enturmado com sua galera, encontrava-se numa das muitas boates da capital. As empregadas tinham sido dispensadas para passar o fim de ano com as respectivas famílias e os seguranças, diminuídos em número, afrouxaram na vigilância.
Quando às cercas elétricas e aos cachorros, Tião Mutreta “deu o seu jeito”.
Entrou na casa e procurou o cofre, que ele sabia, estava estufado de jóias, dólares e euros. Já estava na sala, procurando atrás dos quadros, quando ouviu o barulho de um carro se aproximando pelo jardim. Um olhar furtivo revelou que o rapaz chegava com alguns amigos. Olhou em volta procurando um esconderijo.
Manô estava a mais de mil, cheio de álcool e droga, quando gritou pra sua turma:
— Aí, turma! Vamos lá pra casa. Os veio saíram, podemos divertir à vontade.
Não teve duas vezes. Meia dúzia de moços e moças saíram com ele, e entraram no carro que Manô, no volante, disparou pelas avenidas da cidade.
Estranhamente (mas estava tão dopado quem nem notou) não havia seguranças no portão. Os cães também não apareceram.
Os jovens desceram do carro e abriram a porta da sala.
Momentos antes, Tião Mutreta procurou desesperadamente uma maneira de se evadir. Estava junto à parede esquerda, e para sair pelos fundos, teria de atravessar toda a sala, e seria visto. Na parede, nenhuma janela ou porta. Apenas uma grande lareira, uma aberração arquitetônica tanto pelo tamanho como pela inutilidade, era o único lugar escuro o bastante para Tião se esconder.
Agachou-se e entrou na lareira, e ficou imóvel. Os jovens se espalharam pela sala e pela casa. Aos poucos, Tião foi verificando que poderia fugir pela chaminé da lareira, pois sentiu que era larga e cheia de reentrâncias, onde podia agarrar-se com as mãos e firmar o pés.
Contando com a euforia dos jovens, que pouca atenção dava à lareira, Tião levantou os braços, agarrou-se numa saliência de tijolo, e elevou o corpo. Com um esforço tremendo, segurou outra reentrância. Os pés ainda se balançavam distantes apenas alguns centímetros do chão. Esticou o mais que pode os braços, e tentou agarrar outra saliência. O esforço era grande. Na segunda arrancada para cima, os ombros ficaram presos na lateral da chaminé. Tião tentou girar o corpo. Inutilmente. Não dava para subir mais. Nem para descer. Estava entalado na chaminé.
— Ei, Manô, tou vendo coisas. Olha lá aqueles pés balançando na lareira. Tou alto pra cacete...
Dois jovens se aproximaram. Manô era um deles.
— Que loucura, cara! Deve ser o Papai Noel!
— Vamos puxar ele pra baixo.
Chegou outro rapaz, com uma garrafa na mão.
— Qual é, pó? Isso aí deve ser lenha pra botar fogo. — E jogando um pouco do conteúdo da garrafa nos pés que balançavam, gritou:
— Quem tem um isqueiro? Vamos acender a lareira.
O isqueiro apareceu, mas o líquido não pegou fogo.
— Vou na cozinha buscar algo de verdade pra queimar. — Manô saiu correndo e voltou em seguida com uma garrafa de álcool.
— Sai de perto. Juninho.
O Álcool molhou os sapatos, os tornozelos e a barra da calça do entalado.
— Dá o isqueiro.
Desesperado, Tião tentava subir ou descer, inutilmente. Estava preso de verdade. Sentiu os pés molhados, um frio gelado, ouviu a gritaria que chegava confusa pelo oco da chaminé. Não atinava com o que estava acontecendo. De novo, frio nos pés, na perna, nas abas das calças. De repente, um calor se estendeu pelos pés e pernas.
— Filhos da puta! Puseram fogo em mim.
Os rapazes e as moças ouviram os urros de dor e medo, abafados, que vinham da lareira.
— Pó, tem alguém aí. — Uma gritou
— Puxa ele! — Outra voz.
— Num dá cara, o fogo já alastrou. — Manô olhava com os olhos vidrados, gozando com o cenário.
— Sujou! Vamo embora, gente! — Outra voz, de um moço, que corria em direção à porta.
Todos correram. Manô permaneceu, os olhos fixos na cena macabra.
Os pés agitavam-se, os urros eram cada vez mais pavorosos. Depois, foi a tosse, causada pela fumaça. Até que os movimentos e barulhos finaram-se.
— Venha, Manõ, vamo embora, cara!
Os pés carbonizados ficaram imóveis. Alguns pedaços de tecidos chamejantes caíram. O cheiro insuportável de carne carbonizada se espalhou pela sala.
Manô saiu correndo, a tempo de entrar no carro, onde os companheiros o esperavam, com o motor ligado, pronto para a partida.
É claro que o caso não apareceu nos jornais ou na TV. Apenas um delegado de polícia e seus auxiliares mais próximos, bem como a família do senador, tiveram ciência do caso. Caso classificado como misterioso e insolúvel, pois não havia provas da presença dos moços no local do crime. Estavam todos, conforme as declarações solidárias, numa danceteria a muitos quilômetros de distância da região das mansões.
O morto não foi sequer reconhecido: estava carbonizado e ninguém se preocupou na sua identificação.
Apenas Zeca 38 sabia que o morto era o seu amigo e fazia um esforço muito grande para imaginar o que tinha acontecido ao corajoso Tião Mutreta.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 12 de março de 2009
Conto # 539 da Série Milistórias