A troca
Erica, uma moça de vinte e cinco anos, morena, alta de olhos vívidos, boa menina! Tudo perecia ter dado tão certo em sua terna juventude.
Seus Pais, foram bons pais, ensinara-lhe a estudar bastante e trabalhar muito... os irmãos todos também muito felizes em suas escolhas profissionais.
Mas a vida não estava muito agradável para Érica, apesar de ter um bom trabalho, estudo mediano, e não passar fome. Todos seus sonhos estavam afogados, desejo de morte era o que não lhe faltava... As lágrimas, que era sempre quem lhe acompanhava, estava mais uma vez presente, então com a vontade de resolver de vez seu problema caminhava e pensava: do trabalho, não tinha o que reclamar, ganhava bem, seus pais eram bem casados, não poderia sofrer por eles, comida não lhe faltava...
Neste momento, passava em frente a pessoas desabrigadas, lançadas na calçada, essas sim tinham motivos sobrando para reclamar, para desistir da vida, essas pessoas estão sempre ao relento, e sempre vivendo, como se a vida lhes fosse um presente. Tentava ao vê-las, achar uma razão para secar seus olhos e pensar positivamente, mas via-se inútil fazer isso, pois lhe faltava algo na vida que a motivasse...
Foi quando viu o Senhor Aurélio, já um senhor de avançada idade, com as roupas sujas e cheirando a urina, quantas refeições ele não tinha deixado de fazer, quanto frio não deveria ter passado, quantos Natais passara longe da família?! Amigos? Poderia ele ter algum amigo?
Uma roda de pessoas servia sopa aos moradores de rua no outro lado da rua, as pessoas que estavam sendo servidas pareciam tão alegres. Por um prato de sopa?
Uma senhorinha falava, e falava muito... dizia ela que era poetisa, repetia a palavra com tanto vigor: Eu era Poetisa, sei fazer poesia, ouçam. Dizia a senhorinha aparentando seus setenta anos... Será? Uma Poetisa? Na rua? E ela, tinha casa, coberta, comida sobrando e estragando na geladeira... Será que saberia escrever uma poesia?
Pronto voltou a ser tomada pela melancolia, a senhorinha dizia-se poeta, falava alguns versos cheios de rimas, mas e Erica? Cercava-lhe as lágrimas novamente...
Viu o Senhor Aurélio, ele estava com um pratinho de isopor nas mãos, raspava todo o caldo da sopa com a colherinha de plástico. O velho parecia satisfeito também com a sopa servida. Seria ele algum artista também? Dane-se, ele não tem o que comer todos os dias, ele não tem onde tomar um banho e tirar o cheiro de urina, ele não tem uma cama para se deitar e se aquecer... Dane-se os artistas falidos que se servem de sopas doadas por bons samaritanos.
Erica gemia em sua dor, em sua insignificância, o que ela era? Uma empregada que levava papeis do escritório para casa, que ganhava alguns reais em troca de um dia trancada no escritório? Imersa em seus conflitos entre o ter e o não ter. Pensava que aqueles montes de gentes sem teto, cheirando o pior dos odores talvez tivessem mais que ela própria, eles pelo menos tinham um prato de comida e uma liberdade, enquanto ela tinha um punhado de moedas mas lhe faltava a liberdade. A liberdade de pensamento, de ir e vir, de ser quem ela realmente gostaria de ser, melhor dizendo, ela nunca pensara antes em quem gostaria de ser, sempre foi o que todos esperavam que ela fosse.... E até a liberdade de morrer lhe fora tirada.
Timidamente, chegou bem perto do velho e perguntou-lhe o nome, aquele rosto sujo, onde lhe faltava um dente da frente, causou-lhe medo, mas ela prosseguiu...
Abriu a bolsa e ofereceu-lhe um pacote de bolachas recheadas que carregava consigo, para uma emergência qualquer, não pudesse parar o trabalho para almoçar, agora sabia que ganhara a atenção do mendigo. Conversaram por alguns minutos e depois de saber qual era seu nome, descobriu que o velho vivia ere no passado motorista de uma modelo muito famosa, ele não conseguia pronunciar o nome da tal, mas disse que quando trabalhava levando a senhorita de um lado ao outro, conheceu uns amigos, com eles pode conhecer todos os tipos de droga que existe, viciou-se e quando menos esperava, foi mandado embora, não servia mais para levar a madame de um lado para o outro, gastou todo o dinheiro que lhe restava no consumo das coisas, foi despejado, ele estava morando em São Paulo a trabalho, tinha deixado a namorada e a filha no Rio de Janeiro com a promessa de voltar um dia. Mas o dia que foi despejado por não pagar o aluguel, recebeu a notícia da namorada, aquela menina dos olhos azuis, ela estava morando com um polícia e era melhor ele não chegar perto.
Aurélio então resolveu não voltar para casa, ficou ali, é ali mesmo, onde ele estava, há trinta e dois anos... A história de Aurélio só aumentou a aflição da moça, por que ele não se jogou da ponte? Foi proibido de ver a filha, como era usuário de drogas, juiz nenhum deixaria chegar perto da criança...
Talvez ela pudesse o ajudar, é, e se ela...
- Quero lhe pedir um favor.
- Mas o que eu poderia fazer a você? Você é quem pode fazer algo por mim...
- Engano seu, o senhor pode fazer muito por mim! Amanhã vou lhe trazer um dinheiro, uma roupa e uma faca, você só precisa enfiar a faca em meu peito e pegar o dinheiro e a roupa, se trocar e sair, pega um ônibus e vá para outra cidade, coloque suas roupas dentro de um saco e leve-as com você, jogue em um rio, sei lá, mas não deixe aqui perto, para ninguém descobrir... Você faria isso? O dinheiro é seu, não precisa se preocupar, eu não quero mais viver, mas eu não poderia fazer isso por mim mesma, não haveria explicação para um suicídio.
- Menina, você está me pedindo para te matar e levar seu dinheiro...
- é eu não vou precisar mais dele, e acho que o senhor vai fazer um uso melhor dele do que eu, já não tenho mais razão e nem motivo para viver, mas não tenho coragem de me matar....
Ficou combinado, e no dia seguinte Érica, levaria toda a grana que recebeu de um mês de trabalho para o senhor faminto, mesmo que fosse encontrado, não teria mais nada a perder, já tinha perdido tudo na vida mesmo...
As horas pareciam não passar, Érica, já estava ansiosa, mais uma vez a chorar , mais uma vez com medo de não ter feito a escolha certa, foi até uma loja de conveniências, comprou uma faca, bem afiada, uma calça e uma camiseta, foi andando vagarosamente, pensou se a calça serviria ao amigo, se não irira ficar muito larga, nunca deu roupa de presente a qualquer homem, nunca deu um presente a qualquer pessoa mais próxima, talvez aqueles presentinhos de dia das mães ou dos pais que a escola providencia, ou nos aniversários, sempre algum irmão comprava e ela só ajudava com o dinheiro... Avistou o senhor Aurélio, sentado no mesmo lugar... Quando ele viu a moça, sorriu, muitos anos ele não fazia algo que lhe rendia uns trocados.... A menina como se estivesse encontrando um amigo antigo, tentou sorrir, parecia haver dentro dela alguma cumplicidade, parece que finalmente estava falando com um amigo... Amigo? Estranho, não seria amiga de um ser como aquele... amigos a gente leva em casa para um café, conversa por horas, ri junto... Não ele não seria um amigo, seria um empregado. Sim seria seu primeiro empregado! E finalmente, no fim trágico de sua vida Teria ela um empregado! Com os olhos inundados repetiu as regras:
- Por favor, tome o cuidado para que ninguém nos veja, não deixe o sangue aparecer em você, e fuja quando eu der o suspiro... Aurélio, antes de tudo, queria te pedir uma coisa.
O velho já estava transpirando, então olhou-a nos olhos em busca do pedido
- Me dê um abraço!
Mais de quinze minutos durou o forte abraço, ambos choraram, e quando um tentava se soltar o outro apertava mais forte... Aurélio então soltou a faca que estava em suas mãos, e disse bem ao pé do ouvido de Érica
- Não, não vou fazer o que combinamos, pegue o seu dinheiro e vá...
- Mas nós combinamos você disse que faria,
- Isso foi antes do abraço, quando era mais forte a vontade de comer...
- E você não vai ficar com o dinheiro?
- Não sou assassino e não sou ladrão... Mesmo com seu dinheiro você se via carente e sem vontade de viver, por que eu ei de quere-lo?
-Tudo bem se o Senhor não quer me matar, mas eu estou com o dinheiro e combinei pagar o senhor...
- Filha vá para sua casa, Seu abraço foi a maior riqueza que o mundo todo podia me oferecer, já faz muito tempo que não sinto o que é um abraço e é tudo o que desejo de hoje em diante...
Uma sensação diferente tomou conta do interior de Érica, uma mistura de alívio, e indignação... Eles novamente se olharam, e ela então lhe disse:
- Vista-se amigo, e vamos tomar um café juntos...
O maior miserável, é aquele que não tem afeto por alguém. O que carece de amor!