Dona Nhanhá
Dona", para se referir a ela, era pouco, e até desnecessário. Nhanhá sozinha, virginal
e vestal, já enfeixava todas as virtudes de um passado mais-que-perfeito, e que
insistia em se perpetuar no presente, ainda que imperfeito.
Decana do magistério no ginásio e escola normal da Velha Serrana, ministrava classes
duma ambivalente educação artística que, se para as moças correspondia a desenhos,
arranjos florais e trabalhos de agulha, para os rapazes consistia no artesanato com a
madeira.
Naquele já longínquo ano em que fui seu aluno, lembra-me ter produzido
uma faca para se usar na manteiga. Mas é bom assinalar que a manteiga daqueles
tempos era amarela, artesanal, e tanto cheirava quanto sabia a manteiga mesmo.
Nada a ver com essas barrinhas retangulares e pálidas, pros pálidos paladares de
hojendia.
Acontecia uma vez por semana essa fabulosa classe com Dona Nhanhá e, em meio
àquela faina diabólica não podia haver paz, silêncio, ordem ou algo que se lhes
assemelhe. Era serrar, esculpir, limar e lixar. Quem me deu a idéia de fazer a faca - e
um apelido que desde então não me saiu nem a canivete - foi o Zé Galdino, já
mocinho, cheio de espinhas no rosto, repetente, e pelo jeito a gosto, que aproveitava
todos os toquinhos de madeira pra acertar alguma desprevenida moleira.
Mas a graça era o iniciar das aulas de Dona Nhanhá Campos com a invariável Ave-
Maria, seguida de uma invocação a Santo Tomás de Aquino, cujo significado não pude
ou quis eu alcançar, nem então, nem agora, antes que de vez nos Summa pra sempre
a Theológica, nestes tempos ateus e ameus.
E ninguém se preocupasse com `levar pau`, além dos incômodos toquinhos que o Zé
Galdino desferia. Dona Nhanhá passava a todos, se não com summa, cum laude.
Uma única vez, a vi enfurecida, a ponto de botar um dos meninos pra fora da sala,
algo até então inusitado. Não é que aquele bando de adolescentes ou quase, não
tivéssemos nossos ímpetos. Mas a septuagenária Nhanhá não era quem os inspirava,
esperava ou testemunhava. Aquele seu ar aristocrático era pre-socrático. Não digo que
se comparasse a um bom gole da melhor cicuta, pois gosto, que não se discuta.
Mas o que aconteceu para a expulsão da sala do menino Marco Aurélio, um rapagão de
boa paz, se não meio aparentado, ao menos vizinho de dona Nhanhá, foi que ele,
numa bela manhã anil, quiça de abril, voltou-se para a Mestra, em voz alta, e como
querendo anunciar uma boa-nova, trombeteou:
"A Senhora sabe quem foi que pousou de regresso ao solo brasileiro, ontem de
manhã?" E já foi emendando a resposta: "Juscelino Kubitschek de Oliveira"!
Os céus vieram abaixo. Juscelinista roxa, Dona Nhanhá não admitia ingerências políticas em
suas aulas, e muito menos uma revelação bombástica feito aquela, sobre seu maior ídolo, depois de Santo Tomás. Logo o peixe vivo, aquele Peixão, maior
paixão, de um magoado coração.