Um jantar de amigo
Ele e o cachorro estavam sempre juntos, aventuravam e padeciam igualmente, viviam como grandes amigos, era o cachorro que sempre o acordava, e o acompanhava para onde quer que ele ia.
Brincavam, andavam, vagavam sem destino algum, esperando a luz do sol se apagar para juntos ao contemplarem a lua adormecerem. Os lojistas sempre estavam a expulsarem, mas o cachorro sempre lhe fora fiel.
O Cachorro que o acordava, todas as manhãs, antes que os lojistas chegassem a abrir suas lojas e gritassem para saírem para fora... Ele, seu cobertor arrastando no chão e o cachorro, nunca o vi bater no cão, chamava-o de companheiro, coçava-lhe a cabeça, fazia carícias e até dividia com ele o pão, quando tinha algum, parecia amá-lo...
O cão sempre procurava alguma coisa para lhes matar a fome, bom menino, e estava muitas vezes a voltar com algum resto que encontrara no lixo, sempre satisfeito, roçava nas pernas do dono com alguma coisa para lhes forrar o estômago.
Eram sempre muito fieis um ao outro, sorriam e se faziam companhia, já que o mundo todo os desprezavam.
O homem barbudo, cheirava mal, muito mal, quase não se podia ficar perto de tão mal seu cheiro,o cão também não cheirava bem, eles se suportavam... andavam imundos muitas vezes distâncias enormes para ocuparem o tempo livre.
Era um homem bom e sempre se jogava perto de uma porta fechada de loja, mas nunca roubara ninguém, nunca tirara o que não era dele, nunca agredira nem moço, nem velho, era um pobre desgraçado que caminhava com sua desgraceira no bolso.
Ele a miséria e o cachorro, seu companheiro de longa data, andavam sempre juntos, juntinhos, caminhavam, corriam, parecia que o cão sabia exatamente o que o dono dizia, eram confidentes, sabiam o segredo um do outro e nunca se separavam.
Na noite anterior o cão tinha saído e conseguido um pão, levara para seu dono e dividiam o bocado, mas já havia alguns dias que não comiam e parece que o pedaço dado a cada um não fora suficiente, o dono estava diferente, andava impacientemente de um lado para o outro, dizia ao cão que precisavam comer, o cão abaixava então a cabeça, como que em reverência à dor de seu dono...
Ambos sentiam o vazio da fome já algum tempo, homem e cachorro andavam na tentativa de encontrar alimento e muitas vezes levavam pontapés, latindo e choramingando pelas ruas... O homem já tinha aprendido os latidos do cão e vez e outra via-se os dois latindo um para o outro, o homem colocava o nariz perto do focinho magro do cão e se faziam dois grandes amigos.
O dia inteiro andavam juntos e o dono estava calado, calado como nunca, parecia chorar por dentro, o cão tentava por várias vezes o alegrar, corria, pulava em sua perna, latia, balançada o rabo, mas nada, o homem passava todo o tempo sozinho com seus pensamentos.
Não tiveram café naquele dia, levantaram e arrastaram seus trapos pela rua, passaram a manhã caminhando em silêncio, um silêncio profundo, um silêncio de fome, silêncio fúnebre.
O Cão tentou calar o silêncio e na tentativa fracassada se juntou ao dono caminhando sem alegria, sem festa, sem balanço na calda, apenas acompanhando o vazio de ser vazio.
A tarde foi quente, nem um prato de arroz, nem um resto de ontem, nem um pão endurecido!
O Cão caminhava sem forças, o dono caminhava sem alegria, tanto tempo juntos, tanto tempo sem comer, tanto tempo sem saber o que é sentar a uma mesa sob um banquete...
Andavam sobre o sol daquele dia, um sol que veio castigar os que não tinham teto, sol de escorrer o suor. Buzinas, casas, crianças voltando da escola, empresários chegando do trabalho dentro de seus ternos e gravatas, seus carros de luxo... e o homem, tão só dentro de si mesmo.
Os pensamentos eram de tristeza, de dor, de angustia e solidão. Tinha um cão como companheiro, mas um cão, do que vale um cão?
Pobre cão, já não tinha mais a força de um cão digno de amizade, não conseguia nem um pão para se alimentar, o máximo que conseguia era pessoas olhando com nojo e expulsando de onde estivera...
O Sol já estava por partir, sol que havia trabalhado para valer, estava se despedindo. O homem continuava calado, estava pensando em algo grande, iria fazer alguma coisa para se tirar da situação, ele e seu amigo sairiam dessa situação miserável.
O cão nem imaginava o que pensava o dono, caminhavam, somente caminhavam, mas agora vagarosamente, como se o destino já estivesse perto, tão perto que quase paravam para contemplarem antes de finalmente entrar em seus aconchegos.
As portas dos comércios estavam se fechando, todos já estavam saindo de volta a seus lares, logo o homem se deitaria com seu cão, logo estariam descansando.
O homem sentou-se a porta de uma farmácia, o silêncio já havia chegado lá também, não tinha mais ninguém naquela rua, portas fechadas, sem clientes, sem vendedores, somente ele e seu cachorro magricelo.
Olhou para o cão e disse com voz calma:
- Já fizemos muitas coisas juntas, você já me trouxe alimento, já me acordou de manhã, já me defendeu na rua... Você foi um bom companheiro...
O cão balançava o rabo com uma certa velocidade, dando harmonia as lembranças do dono.
- então acho que te devo muito, realmente posso te chamar de um amigo fiel! Hoje queria uma janta farta e pensei em algo amigão que você vai precisar me ajudar, topa?
Se o cão entendeu ou não é uma incógnita, mas o dono parece ter acreditado que sim. Sussurrou para o amigo:
- vou resolver dois grandes problemas, o seu e o meu, nenhum de nós dois teremos fome por essa noite.
Colocou o cão entre as pernas, deu-lhe uma pedrada na cabeça, com as próprias mãos quebrou-lhe o pescoço e rasgou o couro do amigo que já estava morto e como alguma espécie de urubu diante da carcaça se alimentou saciando a fome que o surpreendia por muitos dias.