537-O BODE ESPIATÓRIO- Das 1001 Noites

Para trás ficaram as noites de angústia nas quais Xerazade havia contemporizado sua morte, contando ao esposo Xariar, noite após noite, histórias maravilhosas de todos os povos do mundo. Após adoçar o coração do rei, fazendo-o desistir da terrível pena imposta às mulheres que desposasse, ela se tornou a rainha e ajudou o rei na direção do grande império, iluminando, com suas histórias e considerações, as decisões de Xariar, as quais se tornaram pérolas de sabedoria.

As histórias continuaram vertendo pela voz maviosa de Xerazade. Nas tardes quentes, sob as árvores do imenso jardim, ao som das águas que caiam mansamente das inúmeras fontes, Xerazade e Xariar passavam horas e horas de doce enlevo. Não mais preocupada em apenas entreter o rei e protelar sua própria execução, as histórias se transformaram em fábulas ou tinham ensinamentos morais, ou, até mesmo relatavam ao esposo, de forma amena e disfarçada, os pequenos incidentes ou acontecimentos que passavam despercebidos ao rei.

Assim, a bela rainha e contadora de histórias levava ao rei, sob forma de narrativas fantasiosas e contos imaginários, notícias de fatos que não chegavam ao seu conhecimento.

Ora, havia no reino um juiz de má índole, que se enriquecia vendendo favores, ou seja, negociando as sentenças dos julgamentos que presidia. Ciente das prevaricações do juiz corrupto, Xerazade contou ao rei, certa tarde, a seguinte história.

Existiu no distante reino de Kandorkistão um homem chamado Mansur El-Honavel de conduta correta e moral impecável, que foi injustamente acusado de ter assassinado uma mulher.

O autor do crime era, na verdade, Al-Ul Kamel, um xeique que ocupava alto cargo no reino. Por isso. desde o primeiro momento, se procurou um bode expiatório para acobertar o verdadeiro assassino. E a escolha recaiu sobre Mansur El-Honavel.

Preso, Mansur foi levado a julgamento, já se prevendo o resultado: a condenação à forca! Ele sabia que, no julgamento, tudo seria feito para condená-lo e que teria poucas chances de sair vivo da armação em que fora envolvido.

O Juiz, por nome Omar Ven-Al, que fora pago por Al-Ul Kamel para levar o pobre homem à morte, simulou um julgamento justo, fazendo uma proposta ao acusado, que poderia provar sua inocência.

— Sou respeitador das leis do Grande Livro — que Alah seja louvado! — e por isso vou deixar sua sorte nas mãos de Alah. Aqui estão dois pedaços de papel (e mostrou-os para todos) em branco. Num deles vou escrever a palavra INOCENTE e em outro a palavra CULPADO. Você escolherá um dos papéis e aquele que sair será o veredicto. Que Alah, o Grande Justiceiro, decida seu destino.

O juiz preparou os dois papéis. Sem que ninguém percebesse, em ambos ele escreveu CULPADO. De modo que, naquele momento, não existia nenhuma chance do acusado Mansur se livrar da forca.

Não havia saída. Não havia alternativa para o Mansur El-Honavel.

O juiz colocou os dois papéis dobrados sobre a mesa, e mandou o acusado escolher um. O homem pensou alguns segundos e pressentindo a armadilha, aproximou-se confiante da mesa, pegou um dos papéis e rapidamente amassou, fez uma bolinha, colocou na boca e o engoliu.

Os presentes ao julgamento reagiram surpresos. Indignado com a atitude de Ab-Honav-El, o juiz interpelou:

— Mas o que você fez? — Ele estava irado, sabendo que seu ardil não funcionara. — Como vamos saber o veredicto de Alah?

— Muito simples — Respondeu o acusado Ab-Honav-El. — Basta olhar o outro pedaço que está aí na mesa. Saberemos que acabei escolhendo o seu contrário.

Com a boca espumando de raiva, o juiz mandou libertar o acusado. Saiu da mesquita onde se realizara o julgamento e refugiou-se na sua propriedade, sentindo por antecipação a vingança de Al-Ul Kamel, a quem prometera, por milhares de moedas de ouro, levar à morte o bode expiatório.

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 7 de março de 2009 –

Conto # 537 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 20/11/2014
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