535-CINQUENTA NOIVAS PARA CINQUENTA NOIVOS-Mitologia

Gosto daqui. Sentado nos degraus do pequeno templo que é ao mesmo tempo monumento e registro histórico da cidade, sinto verdadeiro prazer espairecer a vista pela pequena cidade, a visão ampliando-se pela planície e divisando as colinas a oeste, de suave relevo e perfil harmonioso, contra o céu de puríssimo azul lavado recentemente.

Estou em Argos, cidade construída na planície do mesmo nome, na península do Peloponeso. Já passei aqui diversas estações. A primavera coloca um verdadeiro arco-íris de cores, na cidade e no campo. O verão, que se segue, é ameno e convidativo a excursões e descobertas por toda a região. Aqui tive inspiração e informação para diversos trabalhos.

Onde a história se confunde com a mitologia, difícil fica ao escritor separar realidade dos fatos e feitos heróicos, desenrolados muito antes dos registros e documentos. Respira-se história e inspira-se fantasia e mitologia.

Estou acompanhado de Diomedes, velho professor que conhece Argos mais do que ninguém. É um guia seguro para levar o curioso ou pesquisador pelos tempos remotos da existência da cidade. Olhando a fileira de mosaicos esculpidos, que persiste nas paredes do templo, detrás da colunata, procuro entender o significado das figuras, muitas desgastadas pelo tempo ou destruídas pelos vândalos.

— O friso que você está tentando decifrar tem menos da metade da escultura original. Por isso fica difícil compreendê-la. — Diomedes comenta, acompanhando meu interesse.

— Vejo que representa algum relato real, pois se nota a imponência de certa figura, que se repete e perante a qual os demais se curvam. Você sabe qual é a história ali registrada?

— Sim. Já foi pesquisada e os lapsos dos mosaicos destruídos foram completados.

— Você quer dizer, por fatos históricos conhecidos em outras fontes?

— Um pouco de história, um pouco de tradição, lenda, mitologia, o que você quiser. Vou lhe contar.

Sentado nos degraus da escada semi-destruída ouvi a lenda ou história narrada por Diomedes.

Danao e Egito, irmãos gêmeos, foram geradores fecundos: Danao tinha cinqüenta filhas e Egito, cinqüenta filhos.

Egito e sua enorme família habitavam um país do outro lado do mar, ao longo de sinuoso rio que cortava o deserto e transformava suas margens em verdejantes oásis, quando as águas transbordavam, o que acontecia todos os invernos. O sol era inclemente e os filhos de Egito, amantes da vida ao ar livre e das incursões pelo deserto, tinha a pele queimada, da cor de ébano. A família de Egito mantinha o poder naquela distante região, mantido e ampliado por lutas e guerras, no final das quais ampliavam cada vez mais o domínio de Egito. Eram homens fortes e cruéis e a fama de seu poderio se espalhava por todo o mundo.

Danao permaneceu na sua terra, cultivando trigo, colhendo olivas e pastoreando cabras. Homem de índole pacífica, e nem por isso menos dotado de inteligência, era também um sábio. Sua família o ajudava em tudo e ouvia seus conselhos e, principalmente, obedecia aos avisos e profecias do oráculo, que consultavam quatro vezes por ano, no início de cada estação.

Eram nessas ocasiões que os dois irmãos e suas famílias se encontravam. Egito chegava sempre em grande estilo, acompanhado de numerosa corte, além dos cinqüenta filhos, esposa e grande criadagem. Traziam presentes suntuosos para Danao e suas filhas. Especialmente para o oráculo, ofertava donativos abundantes e ricos, entregues às sacerdotisas.

As cinqüenta filhas de Danao, conhecidas por Danaides, eram todas lindas, sem exceção. O pai e a mãe cuidavam delas como princesas, proporcionando-lhes educação, ensinando-lhes bons modos e transmitindo-lhes sabedoria. Eram moças virtuosas e a esperança de Danao era que elas se casassem com os príncipes e nobres de seu país.

Quando as mais velhas estavam em idade de contraírem núpcias, importantes visitas eram feitas a Danao e a esposa. Emissários de reis e governadores portavam mensagens, convidando as moças a desposarem os príncipes e filhos das importantes famílias.

Foi por essa ocasião que, em visita ao oráculo, Danao e Egito ouviram a profecia — que era muito mais do que simples profecia, mas uma recomendação ou uma ordem — segundo a qual as filhas de Danao deveriam casar com os primos, filhos de Egito.

Danao, que conhecia muito o gênio guerreiro e de má índole de seus sobrinhos, não aceitou as palavras do oráculo.

— Akros, quero que você investigue o oráculo. — Ordenou ao seu empregado mais fiel. — Os presentes de meu irmão devem ter influenciado nas palavras das sacerdotisas, que são as intérpretes do oráculo.

O esperto investigados descobriu, sem tardança, que as sacerdotisas haviam sido subornadas por Egito para dizerem o que ele desejava. Ao ouvir o relatório de Akros, Danao ficou furioso e teve uma acirrada discussão com o irmão.

A briga entre os irmãos foi intensa e ao final da discussão, os dois saíram inimigos consumados. Egito saiu da casa do irmão com um semblante feroz e uma ameaça terrível:

— Aguarde minha volta. Na próxima visita, quero todas as Naiades prontas para serem esposas de meus filhos.

Danao era homem de paz. Não queria se envolver em confusões para obedecer ao oráculo de sacerdotisas corrompidas, nem entregar as filhas para os ferozes descendentes do irmão. Preferiu deixar sua pátria e exilar-se, com toda a família, no Peloponeso, ao norte da ilha de Krete, onde vivia. Fretou navios e embarcou neles toda a família, bens e haveres, deixando para trás a vasta propriedade, o gado e as plantações, a cargo do fiel Akros.

A viagem foi lenta, pois Danao não sabia onde seria bem recebido, onde poderia se estabelecer sem causar problemas.

Após desembarcarem na ponta mais ao sul do Peloponeso, a caravana dirigiu-se para o norte, por caminhos entre colinas suaves e vales verdejantes. De Neápolis para Sparta, de Sparta para Seliasia, desta para Targe, sempre para o norte, rumo à Arcádia.

No acampamento na vasta planície de Argosia, Danao foi visitado por emissários do rei de Argos, chamado Pelasgo.

— O rei Pelasgo terá grande honra em receber o ilustre Danao e abrigar em sua cidade sua família. — Disseram os mandatários de Pelasgo.

O estabelecimento de Danao e sua família em Argos foi tranquilo e em paz. Mas a corte do rei Pelasgo era dada a intrigas palacianas. Não demorou muito, Danao se viu envolvido, sem o desejar, num complô contra Pelasgo. O rei Pelasgo, todavia, após consultar o oráculo de Argos, entregou o trono a Danao, que se tornou o novo rei de Argos.

Entretanto, Egito e seus filhos foram atrás de Danao até Argos, com forte aparato militar. Para evitar uma guerra de conseqüências imprevisíveis, o rei Danao concordou finalmente com o casamento das filhas, as Danaides, com os filhos de Egito.

A cerimônia das núpcias das cinquenta princesas de Argos revestiu-se da maior pompa. Como era costume, os jogos seguiram-se à cerimônia e os noivos foram vencedores em todas as disputas organizadas pelo pai e sagraram-se os campeões das festividades.

Danao, vendo o cruel destino reservado às filhas nas mãos dos filhos de Egito, as havia instruído pra matarem os esposos naquela mesma noite de núpcias. Ofereceu a cada uma um pequeno frasco contendo poderoso veneno para que cumprissem o determinado.

Quarenta e nove moças fizeram o que o pai determinara. Porém Amimone, a mais jovem das Danaides, desobedeceu ao pai, que a puniu por isso.

Amimone cultuava Afrodite, deusa da beleza e do amor, que a protegeu da maldição paterna. Afrodite interveio e pacificou o coração de Danao. Ele não só perdoou a filha como permitiu-lhe permanecer casada com o marido, Linceu.

Linceu, contudo, jamais esqueceu a morte dos quarenta e nove irmãos. Ao sair do templo, numa tarde ensolarada como só as tardes mediterrâneas soem ser, Danao foi apunhalado por Linceu. Seu sangue esvaiu-se até a morte, manchando os degraus sagrados.

Castigo pior tiveram as quarenta e nove irmãs, as Danaides que assassinaram os seus esposos: foram punidas, no Hades, a encherem de água toneis com furos, pelos quais a agua voltava a sair.

Por toda a eternidade.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 26 de fevereiro de 2009

Conto # 535 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 20/11/2014
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