Nosso automóvel
Mamãe abriu a gaveta do cômodo onde guardávamos nossas certidões e algum outro documento e de lá tirou uma folha branca, com a estampa de um automóvel azul, e uns letreiros de igual cor, e ma mostrou, pressurosa:
Este é o nosso automóvel, que vai nos chegar por este bilhete de rifa que seu pai comprou. Vou te pedir duas coisas: não conte para ninguém e reze para que nosso número seja premiado.
Guardei aquilo tudo, solenemente, naquela manhã que já anda perto de sessenta anos atrás. Automóvel, dizia-se assim ao invés de carro, era coisa rara no vilarejo fabril de São Gonçalo do Brumado. Rodantes motorizados que lá se viam, com alguma regularidade, eram a jardineira do Tonico - ainda em tempos pre Tinoco - que nos levava e trazia à sede do município da Velha Serrana, a uma légua de distância, e a caminhonete da fábrica, verdinha, que ficava zanzando nos afazeres industriais e caronas eventuais. No mais, o que pintava de rodas, mas só duas, era a motocicleta do vigário, que vinha das almas cuidar, desde o batizar, até a extrema unção ministrar.
E fiquei matutando comigo, sem contar nem à mana Bebel, ou ao mano Beu, aquele testemunho oníricocular, que foi só meu. Então iríamos ter um automóvel azul, aquele luxo, que nem o gerente da fábrica alcançava...Será que papai aprenderia a choferar depressa, e nos levaria prum lugar bom a bessa? Ver peixinhos na fonte da praça de Pará de Minas, comer sanduíches na rodoviária, tomando guaraná antártica, haveria doçura mais catártica?
Não me lembra hoje, se rezei consoante minha mãe me aconselhou. Naquela gaveta mágica sei que mexi, mas sem a coragem de revirar a papelada. Mas com a gasolina tão cara hoje em dia...diferença, faria?