Elias da Zona Baixa quer Justiça

Braço levantado em riste. “Um café por favor”. O garçom olha ao fundo o sujeito de terno escuro bem cortado com riscas de giz, sapato envernizado, e com chapéu panamá levemente inclinado no meio da testa. “Outro, Elias? Hoje você vai ficar inspirado, nem sabia que o malandro escrevia”.

Elias dá um sorriso protocolar e volta a levantar sua caneta ao papel, já nesta hora todo recortado em linhas, cheio de barras e rabiscos atravessando o papel amarelado sem pautas.

Não sou muito bom com as palavras, estudei pouco, minha mãe já me dizia que era melhor eu... “Tá aí seu cafezinho, novo poeta”, Ricardinho o homem que trabalhava servindo as mesas ao fundo o tira de seus pensamentos de pouca estima com uma leve gargalhada. Elias solta a caneta, levanta o olhar para dentro do ambiente e se certifica de que provavelmente hoje é um dia que não sairá nada, de novo.

O café Rajah neste sábado não estava muito silencioso. Numa mesa a dois metros de Elias estavam três homens da sociedade dos prósperos cidadãos do Antigo Porto debatendo sobre o resultado do futebol da tarde, o Sport Club aplicou uma inapelável goleada no São João e agora era líder do campeonato. Na mesa da entrada do café, logo ao lado do balcão, eram duas senhoras gordas que riam, mas riam muito de um bêbado que cantava a letra do samba Carinhoso no meio da calçada, alterando parte da letra. “Meu Coração, não sei porquê, bate feliz, eu vou beber”. Raááárárá, a voz estridente da rechonchuda incomodava, tirava qualquer tentativa de concentração.

Elias volta ao seu texto, ele seria curtinho, somente umas dez linhas. E tinha que ser direto ao ponto. Um manifesto, um pequeno manifesto. Mas não saía. Quando os amigos de Elias se juntaram há menos de uma semana na casa de Josué eles sabiam o que tinham que fazer. Já era hora de não permitirem mais que os negros, mulatos e mestiços, o pessoal da zona de baixo da cidade, sofressem com tanta violência e desprezo. As agressões e demonstrações cotidianas de intolerância tinham que ter um fim, mereciam justiça. Elias sabia o que era ser abordado pelos policiais nas rondas noturnas nas ruas, o que era ser mirado com receio no comércio e com desdém nos olhares que o cortavam no seu caminhar nas ruas.

A segunda reunião do grupo aconteceria em dois dias, cada um dos sete, entre rapazes e homens de meia idade, lançariam um protesto escrito que seria lançado nos principais jornais para a leitura de toda cidade. E a intenção era de criar uma grande polêmica e um aviso sobre a situação social já insustentável. E ficou definido naquela salinha na casa de Josué que eles leriam os sete textos dos participantes do grupo em voz alta, e compilariam um novo texto a partir de trechos selecionados daqueles que melhor se saíssem. Seria o manifesto dos pretos anônimos da Zona Baixa. Elias já imaginava a repercussão que isso daria, nunca um grupo negro desafiou a alta burguesia. Já eram três negros mortos no ano, e duas casas incendiadas, aparentemente sem motivos e sem suspeitos, e isto que estávamos em março. E a polícia não demostrava uma grande preocupação em resolver os casos.

Viemos à público. Começava a carta, para mostrar nossa indignação com os crimes que assolam nossa cidade do Antigo Porto. Estamos cansados de tantas perseguições... Elias não sabia mais como seguir, deixava sua mão livre, mas cada palavra que vinha era um novo impasse. Não tá bom, não é bem isso. Elias atirou a caneta no meio da mesa que deu um salto e bateu no açucareiro. Ricardinho no balcão sorriu mais uma vez, mas desta vez não caçoou, sentiu que o amigo estava irritado.

Do lado de dentro as conversas seguiam em tom festivo. As senhoras da entrada do bar acendiam uma cigarrilha, os homens que debatiam futebol agora faziam um brinde, brandindo copos e gritando vivas ao novo craque do Sport Club. Elias pensava em jogar tudo o que esboçou fora, o melhor seria avisar o grupo que suas tentativas tinham sido em vão. A caneta nunca se acertava entre o calo de seus dedos. O relógio há anunciava que eram mais de onze e meia da manhã, quase hora do almoço.

Os pensamentos de Elias foram abafados por alguns gritos que vinham ao longe, do outro lado da rua. As senhoras da entrada viraram os rostos polpudos para a porta de entrada do café. Ricardinho deixou a toalha e o copo que secava na pia, abriu a porta de saída da área de dentro do balcão e se dirigiu até a soleira da entrada do estabelecimento. Dois homens de mais de cinquenta anos corriam do outro lado da rua e gritavam, “pega ladrão, pega ladrão”. Todos no bar ouviram o bonde freando nos trilhos na esquina e os berros das pessoas que gritavam, “pega”! Os olhos de todos do café se voltavam para a rua, mas ninguém identificava quem estava sendo perseguido.

Em segundos, avançou por uma das janelas do bar e se agarrou na mureta um menino negro, de cerca de seus nove anos. Seus olhos estavam arregalados de pânico e o seu nariz levemente vermelho, trilhava para a boca um fino líquido vermelho escuro que parecia ser sangue. Quando o menino pulou para dentro do café, caiu em cima de uma das mesas de madeira e se ajoelhou no chão, como se para esconder-se de seus algozes. O menino estava descalço, uma calça surrada e rasgada na altura da perna esquerda, e com uma camisa azul de botão rota e encardida.

Na mesa ao lado, as senhoras se levantaram com o olhar de desespero, pegaram suas bolsas em cima da mesa e com o olhar enojado se puseram a gritar. “Sai daqui, peguem este moleque”, “Peguem este ladrãozinho”. Elias levantou-se, e largando a caneta mais uma vez, não entendendo a situação. Os senhores de terno alinhado se levantaram, um deles foi para a rua avisar que o pegaram, enquanto o mais novo entre o grupo, agarrou o menino nos braços pelas costas, e falou, “como fede este vagabundo”.

Elias se aproximou do menino controlado, e viu que na porta da frente já se encontravam os dois homens que vinham atrás do menino pela rua e mais uma pequena multidão que desceu do bonde para ver o desfecho. “Lincha”, “Acabem com o ladrão”, os mais exaltados sentenciavam “Assassino”, sem saber do que se tratava. Ele pôs a mão direita no homem que sustentava o suposto ladrão e voltou seu rosto para o menino “calma, qual seu nome e o que aconteceu”? “Alfredo, não fui eu, não sei”. “Não sabe o que Alfredo, o que você fez”. “Eu, eu, eu...” “Calma, fala”. Nisto, Elias já via que os dois homens traziam nas mãos pequenos instrumentos para agredir o moleque, uma corrente e uma faca afiada para corte de carnes. Elias puxou o menino para ele, e se colocou com o corpo entre as duas mesas que fechavam o caminho para a entrada, evitando que os agressores passassem por ele e pegassem o menino.

“Estava passando na frente do Mercado. Eu só estava pedindo dinheiro, quando um homem gritou comigo e começou a correr com uma faca na mão pedindo para me pegar”. “E porque você correu”? “Para não apanhar de novo como da semana passada”. Um dos homens com uma corrente brandia nas mãos a ferramenta e começou a pedir para Elias sair do caminho, já que era a hora de dar uma surra.

Elias virou-se para os dois homens e pediu detalhes do ocorrido. Os homens trabalhavam no mercado, e tinham notícias de que um ladrãozinho estava operando na zona. Uma senhora entrou na loja gritando e disse que foi assaltada por um moreninho que usava uma navalha. Ele pediu seu colar de prata e ela entregou. Era um pivete, mais um negrinho ladrão da zona do mercado eles sabiam. “Mas como vocês sabem que é ele”? “Nós saímos do mercado e vimos este safado se aproximando da próxima vítima, nós gritamos e ele saiu correndo. Claro que é ele”. Nisto o menino se punha a chorar, as mãos limpavam o nariz e a mancha de sangue, e dizia baixinho, “eu só tava pedindo, só pedindo”.

Elias pediu detalhes, os homens não sabiam dizer como era o ladrão, mas que a senhora o descreveu como negro, magro, alto e com o cabelo bem encarapinhado. Elias pegou o menino pela mão e verificou que seu cabelo era muito curto, quase rapado na cabeça. O menino com as mãos no rosto cobria sua face e chorava. Elias o levantou, o menino batia no máximo em seu ombro e isto que Elias não era muito alto. Ele virou para os homens e disse, “Ele é baixo, deve ter no máximo um metro e cinquenta e cinco, não deve ser ele. Os dois justiceiros se puseram a cochichar e Elias os colocou em dúvida sobre a descrição da senhora. Um deles falou, “Ela estava nervosa, de certo não viu tão bem, mas é ele sim temos certeza”.

Na porta de entrada do café, Ricardinho entrou com dois policiais. Eles abriram caminho entre os homens que rapidamente largaram suas armas. “É ele”. Elias contou rapidamente a história que ouviu sobre o menino, o identificando como Alfredo, dizia-se inocente e a descrição não batia com sua denunciante. Os policiais ouviram atentamente e gritaram de dentro do bar por silêncio, os gritos de justiça lá fora ainda se faziam ouvir. “Aqui é a polícia, ninguém vai bater no menino não”. Um policial pôs a mão no garoto e averiguou seus bolsos. Neles caíam apenas moedas de cruzeiros de pouco valor, e mais duas balas de coco e uma chave que supostamente era de sua casa. “Ele vai ir com a gente para a delegacia, lá vamos procurar seus responsáveis e esperar por uma melhor descrição da senhora que foi assaltada”.

Os dois policiais escoltaram o menino pelo braço, ele já tinha parado de chorar naquela hora. Na calçada, o povo ao redor olhava o menino com curiosidade, alguns gritavam e o chamavam de “ladrão”, outros aplaudiam a polícia que havia prendido mais uma grande ameaça das ruas. Em dois ou três minutos o povo reunido em frente ao café se dispersou. As senhoras resolveram ir embora, e os homens seguiram falando dos próximos jogos do campeonato. Ricardinho virou-se para Elias e disse, “se era ele, não sabemos, mas você salvou o menino. Estes ladrãozinhos estão demais hoje em dia, nunca foi tão perigoso andar nas ruas. Mas acho que ele aprendeu bastante com este susto”.

Elias não disse uma palavra. Ele estava impressionado com o erro que podia estar sendo cometido. Podia ser Alfredo um batedor de carteira, mas para Elias, não era o menino que portava uma navalha, não tinha jeito de ter a habilidade dos boêmios e malandros da região do mercado, e dificilmente um menino daquela idade já portaria uma arma. Elias sabia que provavelmente ele estava sendo confundido pela vítima. A sanha agressiva da sociedade do Antigo Porto não dava espaços para os moleques das ruas, para os supostos ladrões que deveriam ser eliminados. Banhados em ódio e vontade de contra atacar, muitos se equivocavam corriqueiramente punindo sem provas e antecipadamente os pobres, os negros e mestiços da zona baixa.

Elias sentou-se na sua mesa e sem pestanejar registrou no pedaço de papel, antes que as suas ideias desaparecessem. Eram cinco para meio dia quando escreveu:

Viemos à público para mostrar nossa indignação com os crimes que assolam nossa cidade do Antigo Porto. Estamos cansados de tantas perseguições, maldades e mal entendidos. Os moradores da zona baixa são os principais acusados de crimes, violência e desgraças que deixam nossa cidade ainda mais hostil para boa parcela da sua população. Nós, os negros, mestiços, e também os brancos pobres do Antigo Porto queremos justiça, assim como vocês. Se vivemos num Estado que nos promete justiça social e igualdade como está escrito em nossa Constituição, nós ainda não a vimos nem a recebemos. Depois de séculos de escravidão e trabalhos forçados nesta porção da América do Sul, ainda somos impedidos de frequentar lugares públicos, clubes e eventos em várias regiões da cidade. Além do mais, não temos assistência dos governos que passaram nestas décadas nos prometendo melhores escolas e oportunidades para nossos filhos. Somos tratados como bichos, jogados ao desdém e à difamação pública, já que somos vistos como atraso, como a escória e como violadores das leis e dos costumes. Chega! Queremos punição exemplar por crimes de racismo, de assassinatos e de linchamentos, assim como muitos de nós são punidos, alguns devidamente, e outros são presos sem provas suficientes e sem nenhuma possibilidade de defesa. Nós, os negros anônimos da zona baixa desejamos viver em harmonia social, mas para que isso seja possível, pedimos a imediata apuração da polícia dos últimos casos de assassinatos e de sinistros, além da liberdade de acesso aos eventos e espaços públicos como qualquer cidadão do Antigo Porto.

A PAZ SÓ VINGARÁ QUANDO ESTA GUERRA SUJA DECLINAR!

(Este texto faz parte de um projeto de romance em andamento).