533-A VISITA EPISCOPAL- Caso estranho de fé
Ao assumir o bispado de uma extensa diocese do interior, Dom Acácio fez questão de visitar todas as paróquias sob sua égide. Desde as mais importantes e influentes até as mais modestas e distantes da sede do bispado.
Chegou à pequena cidade Oncotô, a mais longínqua de todas, ao entardecer. Foi efusivamente recebido pelo pároco padre Clarindo e pelas autoridades do local, já que a visita do bispo era circunstância importante e merecia toda a pompa. Aos discursos, beija-mão e dobrados executados pela banda de Música Maestro Matias, seguiu-se o jantar que, a seu pedido, foi modesto e servido na própria casa paroquial. Em seguida, aí pelas sete da noite, uma celebração religiosa na igreja de São Vitorino, padroeiro da cidade. Após o que, cansado da viagem e dos eventos, sua reverendíssima recolheu-se ao leito: o quarto principal da casa paroquial, limpo e simples, o que agradou às maneiras modestas do bispo.
De madrugada, como acontece com todo idoso, veio a vontade de urinar. Para comodidade do hóspede, e como era hábito naqueles tempos de antanho, um urinol tinha sido colocado sob a cama do visitante ilustre.
Dom Acácio serviu-se do vaso noturno e nele aliviou sua necessidade.
O vaso não era um simples penico e sim uma peça de louça, com relevos externos e decorado interiormente. Uma verdadeira obra de arte importada da França. Pertencia à dona Marcolina, presidenta de ordem religiosa e pessoa influente na administração da casa paroquial, que em boa hora teve a lembrança de mandar colocá-lo no quarto para aquela noite especial.
No dia seguinte, ela foi a primeira a chegar à casa paroquial, para beijar a mão do bispo. Entretanto, Dom Acácio já havia levantado e estava na sacristia.
Encontrou com a empregada, que vinha com o urinol, com todo o cuidado, pois estava cheio quase à borda.
— Aonde você vai com isso? — Perguntou à doméstica.
— Uai, vou jogar fora. Na latrina no quintal. — Respondeu a serviçal.
— Que é isso? Onde já se viu! Jogar fora? Isto é sagrado. — E tomando das mãos da assustada mulher, colocou sobre a mesa, ordenando:
— Deixe aqui que vou lá em casa buscar uma jarra.
Foi num pé e voltou no outro, como se diz. Trazia uma fina jarra de cristal, na qual derramou o líquido amarelo e já um pouquinho mal-cheiroso.
— Que a senhora vai fazer com isso?
— Depois eu lhe digo. — E saiu, carregando consigo jarra, com cuidado extremo.
A apologia dos poderes milagrosos do xixi do bispo foi feita à boca pequena, entre as devotas e pias mulheres amigas de dona Marcolina.
— Serve pra tudo. É só ter fé que cura qualquer coisa.
E recomendava parcimônia no uso:
— Aqui está um pouquinho. — Dizia, ao entregar um vidrinho com o liquido milagroso. — Não vá abusar, porque é muito pouco mesmo.
Foi tudo feito na maior discrição, pois se tratava de algo muito, muito sagrado, conforme pensamento e propaganda da importante distribuidora do material. Mas, por mais que houvesse mistério e segredo na distribuição do liquido sagrado, a notícia chegou aos ouvidos do padre Clarindo, que chamou a beata para uma reprimenda:
— Acabe com esta coisa imediatamente. Isto é um sacrilégio. Se não jogar fora, não lhe dou absolvição na próxima confissão.
Ameaçada com tão grande castigo, a piedosa distribuidora do líquido tido como milagroso, reuniu duas das melhores amigas para, numa cerimônia solene, testemunhada só pelas três, dar fim ao xixi do bispo.
— Onde vamos jogá-lo?
— Não pode ser jogado em qualquer lugar.
— Tem de ser em um lugar bem cuidado, de respeito.
— No cemitério?
— Não, não, lá a gente pode ser vista.
— No jardim de minha casa. — Sugeriu uma delas, Ofélia, que tinha orgulho de suas roseiras, floridas o ano inteiro, das mais variadas cores.
— Sim. Entre as roseiras. Não existe lugar mais apropriado.
E lá foram as três, com a jarra coberta por uma alva toalha de linho, bordada no centro e com franjas de crochê.
No jardim, destacava-se uma antiga e vigorosa roseira, carregada de flores de intenso vermelho, escorada em alguns pontos, tamanho era o peso de tantas rosas. E muitos botões, que prometiam florada contínua por muito tempo.
— Veja, no pé desta roseira. — Indicou a própria dona do jardim. — Não tem lugar mais bonito do que aqui.
As três ajoelharam-se, fizeram cada qual uma oração, e, com toda a reverência, derramaram o xixi do bispo no pé da roseira.
Levantaram-se, persignaram-se e retiraram-se, tristes, mas, enfim, procedendo de forma respeitosa e obedecendo às ordens do padre Clarindo.
Na manhã do dia seguinte a roseira estava morta.
ANTÔNIO GOBBO
Belo Horizonte, 17 de fevereiro de 2009.
Conto # 533 Da Série Milistórias