CRISTO E MARX

Estou surpreso comigo mesmo. Até o sono fugiu, tal o entusiasmo com a leitura da bíblia. Descobri que o evangelho constitui a essência do cristianismo. Foi através dele que desmoronou o meu ateísmo paralítico.

Leio com sofreguidão e euforia. Aliás, gosto do silêncio da madrugada, quando a agitação do dia-a-dia desaparece e gozamos algumas horas de tranqüilidade. Somente o canto dos galos e o latido dos cães interrompem poeticamente a paz da noite.

Vou ao banheiro mijar. Minha taxa de açúcar deve estar alta. Sou diabético. Já mijei três vezes essa noite. Olho para a estante de aço, onde coloco meus livros. Um volume de cor vermelha, capa grossa, destaca-se entre outros diante de mim. É uma biografia de Karl Marx. Já não me empolgo como antigamente. Talvez esteja saturado de ler Karl Marx durante tantos anos. Esqueço o eminente guia da classe trabalhadora. A imagem da sua barba branca dilui-se nas sombras da noite.

A figura de Cristo, pregado na cruz, domina-me pela madrugada afora. Deitado na rede, releio por não sei quantas vezes os relatos de Mateus, Marcos, Lucas e João sobre a vida de Cristo. Segundo o evangelho, Cristo ressuscitou Lázaro, curou cegos, aleijados e leprosos. Ele falou aos fariseus que era o testemunho de que fora enviado por Deus. João afirmou que Cristo é o próprio Deus, e que já existia muito antes de qualquer coisa, Jesus falou que a prova de sua origem está nos milagres.

Lá fora, gatos se agarram escandalosamente. Só fazem comer, dormir e procriar. Cagam bastante. Ainda bem que alguns deles enterram a própria merda. As mulheres gostam de gatos. Aqui, em casa, Josefa, minha mulher, adora plantas e gatos. Nesse momento, ela está dormindo com Angélica.

Só alcançaremos a salvação se cumprirmos os dez mandamentos, conforme o evangelho. Duvido que algum ser humano tenha obedecido a todos eles. Há uma passagem no evangelho que os discípulos de Jesus perguntam-lhe se era possível uma pessoa entrar no reino de Deus. Jesus respondeu que humanamente é impossível a raça humana ir para o reino de Deus, mas que para Deus tudo é possível. O evangelho narra o episódio em que um homem rico dissera a Cristo que obedecia aos dez mandamentos, acrescentando que pretendia ser um dos seguidores Dele. Então, Jesus falou ao homem que renunciasse aos seus bens materiais. Triste, ele foi embora. Jesus sentenciou que os ricos não entrarão no reino de Deus. É mais fácil um camelo entrar no fundo de uma agulha.

Fico desapontado. Minha fé é abalada momentaneamente. Acho Deus muito rigoroso para com a humanidade. Apesar disso, reafirmo minha fé em Jesus. Afinal de contas, colocaram em minha cabeça, ainda em tenra idade, a crença em Deus. Agora, na maturidade, acreditar em Deus tornou-se uma coisa vital, como água. Percebo que a fé é o combustível da alma.

Sinto saudade da juventude, quando galvanizado pelo marxismo, negava a existência de Deus. Vaidade de jovem, buscando auto-afirmação. Considerava a religião um “ópio do povo”. Hoje compreendo que Marx e Cristo são diferentes. Marx foi um gênio entre os homens e Cristo, diz o evangelho, é Deus, que assumiu forma humana para nos salvar. Paro de ler. A madrugada avança de encontro ao dia. O relógio marca três horas. Tomo um copo d’água. Não é hora de ser beber. Deve ser o diabetes.

Assalta-me um tique nervoso, ao me sentir estranho, desconhecendo a minha própria pessoa. É iluminação ou loucura? Não sei. A vontade de ler aumenta. Como é o reino de Deus?Jesus comparou-o a uma pequena semente de mostarda plantada numa horta, para logo depois transformá-la num arbusto. Jesus disse que as criancinhas são as primeiras no reino de Deus. Concordo. Sempre vi nas criancinhas sinais divinos. Vejo-as a todo instante ao contemplar minha filha.

As muriçocas incomodam-me. Estão insuportáveis. Ligo indignado o ventilador, porque o ruído tira o silêncio da madrugada.

O telejornal da noite mostrou os conflitos entre trabalhadores e a polícia. Muitos foram presos, outros feridos e alguns mortos, estavam reivindicando melhores salários. Marx tinha razão. O capitalismo não resolve os problemas da fome e da miséria. Sobre a religião, Marx disse “ que é o coração em um mundo sem coração”. Caminho pela casa para estirar as pernas, com a Bíblia na mão, leio um salmo de Davi. Noto a poesia que permeia o salmo. Devo frequentar uma igreja? ali, empolgado com o salmo, digo para mim mesmo que sou livre pensador, sem religião e sem igreja, meu templo é minha casa.

A briga entre Jesus, sacerdotes judaicos fariseus mostraram que era um dialético. Os líderes religiosos judaicos tentaram várias vezes flagrá-lo em contradições para crucificá-lo. Jesus combateu a hipocrisia deles energicamente. Espionavam Jesus dia e noite. Tinham inveja Dele, porque Cristo era querido pelo povo, que seguia em multidão. Tiveram que apelar para a mentira e a calúnia. Só assim conseguiram a autorização de Pilatos para crucificá-lo.

Observo que o Velho Testamentos está coerente com o Novo. Jeremias já tinha profetizado a vinda do Messias. Na minha pequena lógica detecto uma contradição sobre as últimas palavras de Cristo ao entregar o espírito, na cruz. Mateus e Marcos dizem uma coisa, Lucas e João dizem outra.

A chegada de Jesus em Jerusalém, montado num jumentinho, ovacionado pelo povo como um rei instiga a minha imaginação, como se estivesse presente.

Como será o fim do mundo? Eis uma pergunta que me perturba. A bíblia afirma que haverá coisas esquisitas no sol, na lua e nas estrelas. Antes, porém, as nações estarão em guerra umas com as outras.

Imagino Jesus pregando na cruz, no alto do Gólgota. É alvo de escárnio até no instante supremo. A terra escureceu, houve terremoto e sepulturas de gente piedosa se abriram ressuscitando muitas pessoas, diz o evangelho. Rompe um novo dia. Estou disposto como se estivesse dormindo a noite inteira. Tranquilo e leve contemplo a bíblia como meu livro de cabeceira.

samuel filho
Enviado por samuel filho em 19/11/2014
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