531-TIO GORDO-Biografia de Francisco Curcio-3a. parte

TIO GORDO

3ª parte -Em Mococa

Cronologia – 3ª. parte

1892/1895 – Em Mococa, onde trabalhou empregado em loja de secos e molhado.

O desembarque no porto de Santos foi tumultuado. Havia diversas classes de imigrantes. A maioria se destinava às lavouras de café nos estados de São Paulo e Minas Gerais. Os grandes proprietários investiam dinheiro para quês os imigrantes fossem trabalhar em suas fazendas, carentes de mão de obra barata. Eles seriam substitutos dos negros, escravos que haviam sido liberados alguns anos antes por lei de uma princesa. Desta forma, no porto se encontravam muitos enviados pelos fazendeiros, capatazes e ex-feitores (os que eram encarregados da disciplina entre os escravos), os quais já iam procurando pelos nomes aquelas famílias que levariam direto do porto para as fazendas.

Para cada família de imigrante estava sob este regime, o governo brasileiro concedia uma ajuda inicial em dinheiro, de vinte mil réis.

Outros imigrantes chegavam livres deste vínculo. Eram artesãos e pequenos comerciantes, ou, como Francesco e Nicola, homens sem habilidades especiais que vinham “fazer a América”, como diziam. Estes ficavam abrigados provisoriamente na Hospedaria dos Imigrantes, imponentes edifício situado na imediação do porto. Ali ficavam até a regularização de seus papeis de imigrantes e conseguissem transporte para São Paulo, a grande meta dos imigrantes italianos.

... ... ...

— Mas que é aquilo? — Beatriz agarrou-se a Francesco, puxando pelo paletó e escondendo-se atrás dele. Com a mão, apontou para um negro que ajudava no transporte de malas. Estava arqueado sob o peso de malas e sacolas e caminhava com dificuldade. A moça italiana jamais havia visto um negro e tremia. — Parece um selvagem!

— Pra mim, parece um macaco. Um macaco domesticado — Nicola, desastradamente, falou em voz alta.

Francesco imediatamente chamou a atenção dos dois.

— Fiquem quietos e calem a boca! É apenas um homem negro. Aqui no Brasil existem muitos. Não fazem mal a ninguém. Pelo contrário, são trabalhadores que tentam ganhar algum dinheiro em serviços simples.

Dirigiram-se à Hospedaria. Francesco era despachado e sabia tratar as pessoas, e foram colocados em um pequeno quarto.

— Vamos esperar o Bruno, nosso primo, que deve chegar a qualquer momento. — Francesco se referia ao primo Bruno, que já sabe que estamos aqui em Santos. — Vou até o telégrafo, passar uma mensagem para nosso pai.

Na fila do telégrafo (pois muitos imigrantes desejavam mandar notícias de sua chegada aos parentes que ficaram na Itália), Francesco desenvolveu conversa com um patrício.

— Vou para Ribeirão Preto — disse o novo conhecido. — Me disseram que é uma cidade boa, fica numa região chamada Mogyana e está desenvolvendo.

— Sim — confirmou Francisco — Também vou para esta região. Vou para Mococa. Estou esperando meu primo.

— Pois então, viajará pela estrada de ferro. Vai ver que região boa. — E estendendo a mão, apertou a de Francesco. — Prazer em conhecer. Me chamo Nicolla Novelini.

— Prazer. Me chamo Francesco Cúrcio.

Naquele momento, estabeleceu-se um conhecimento que algum tempo depois se transformaria numa amizade sólida e se estenderia por muitos e muitos anos.

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Três dias permaneceram Francesco, Nicola e Beatriz na Hospedaria dos Imigrantes. Francesco era muito comunicativo e conversava com todos, falando de seus planos e ouvindo os outros narrando seus sonhos. Muitas famílias teriam seus destinos cruzados e aqueles dias de ansiedade e de expectativa seriam recordados mais tarde.

No terceiro dia, chegou o primo.

— Ecco! Aqui estão vocês, finalmente! Como foram de viagem? Como estão? — As perguntas chegavam entremeadas aos abraços e beijos, bem no costume dos italianos. E antes que eles respondessem, Bruno já ia dando notícias das providências que tomara. Falava um misto de italiano e português — mas que aqui é registrado apenas neste último idioma.

— Tomamos o trem hoje à noite. Vamos de Santos a São Paulo. Lá, faremos baldeação para a Mogyana e amanhã chegaremos a Mococa.

Francesco foi com Bruno comprar as passagens de trem. Nicolla e Beatrice foram com eles. Nos caminho, a conversa se desenvolvia sobre todos os assuntos.

— Agora, temos esta questão dos nomes. Vocês devem adotar nomes daqui, para ficar mais fácil tratar com as autoridades. Eu já me adaptei. Era Fracesco, como você, primo, mas aqui sou chamado de Francisco. Nicola não faz diferença. Beatrice será Beatriz.

E assim, desta forma simples, os imigrantes iam se integrando aos novos costumes e à nova vida que estava começando ali.

... ... ...

Era o final de outubro de 1891. Francisco estava com 26 anos, Nicola tinha 23 e Beatriz era uma bela jovem de 20 anos.

Estavam todos um tanto quanto assustados e temerosos, à medida que o trem de ferro seguia rumo ao interior do novo país. As paisagens se sucediam em contrastes surpreendentes. Primeiro foi a subida da Serra do Mar, no percurso de Santos a São Paulo. Por força do relevo, as encostas eram ainda coberta de floresta, que cediam à ferrovia apenas o suficiente para a colocação dos trilhos. O mato era fechado e no vales profundos impedia que a claridade chegasse até o interior dos vagões.

Muito pouco viram da grande cidade em construção, pois permaneceram apenas poucas horas na Estação da Luz, onde tomaram o trem para Jundiaí, outro ponto de baldeação.

Nesta estação, um novo trem, desta vez uma composição mais modesta, os vagões simples de bancos de madeira da Companhia Mogyana. Então, a paisagem que avistavam através das pequenas janelas era diferente: imensas áreas cultivadas, as fileiras de café se estendendo sem fim até o horizonte, de um verde profundo. Os topos dos montes ainda permaneciam intocados, conservando a mata nativa, pois havia muita terra abaixo a serem cultivadas. Aqui e ali, pelos vales, a vegetação nativa acompanhava os percursos dos rios, que permaneciam invisíveis e eram apenas adivinhados pelos viajantes, extasiados ante tanta diversidade de verde que cobria toda a superfície.

As estações eram poucas e minúsculas, mas o movimento de passageiros era grande. A chegada de imigrantes era a causa daquele movimento, e ouvia-se constantemente as palavras estrangeiras, bem como nas saudações de chegadas e despedidas notava-se a maneira expansiva dos recém-chegados.

— Mococa é o ponto final da ferrovia. Mas a construção continua, pois existem muitas cidades na região e a produção de café cresce a cada ano. Só mesmo uma ferrovia para transportar essa produção para o porto de Santos. — Bruno ia explicando o que já aprendera em poucos anos de vivência na nova terra.

— Qual é o melhor negócio para aplicar algum dinheiro? — Francisco perguntou ao primo. — Comprar terras? Estabelecer no comércio?

— Você verá quando chegarmos a Mococa. — Bruno respondeu. — Tenho trabalho lá, mas penso em estabelecer-me em Monte Santo, que fica um pouco adiante. As cidades menores apresentam mais oportunidades.

— Quero ter meu próprio negócio. — Disse Francisco.

— Sim. Mas é melhor você trabalhar um pouco como empregado, guarde seu capital. Trabalhando como empregado, você terá um salário para se manter e irá vendo qual o melhor negócio, o que mais lhe convém.

... ... ...

Na estação da estrada de ferro esperava-os Jovina, a mulher de Bruno, e Gaspar, o filho de dois anos. A recepção foi uma festa, com muitos abraços, beijos, saudações em altas vozes, como se todos fossem velhos conhecidos.

Foram à pé para a casa de Bruno e Cornélia, tendo ajustado uma charrete para levar as malas.

— Temos um quarto para vocês. É pequeno, mas vocês poderão se acomodar por uns dias.

O quarto era realmente pequeno. Três camas estavam arrumadas, separadas por estreitos espaços, e um armário para roupas, tudo muito exíguo, mostravam claramente que, por mais cordiais que fossem Bruno e Cornélia, a permanência dos três deveria ser breve.

E assim foi, pois uma das primeiras providências de Francisco foi procurar uma pequena casa para alugar, que pudesse abrigar os três irmãos. E ao mesmo conversavam com os comerciantes, oferecendo-se como empregado, conforme havia recomendado Bruno, o primo.

Seja por sua empatia, seja pela seriedade e firmeza com que falava e à cordialidade com que tratava a todos, as coisas aconteciam com certa facilidade para Francisco. Em menos de quinze dias encontrou uma casa modesta e apropriada para os três.

Nicola, ansioso por ganhar algum dinheiro trabalhando, foi o primeiro a encontrar trabalho; A prefeitura havia construído o Matadouro Municipal e estava empregando pessoal que quisesse trabalhar como magarefes.

— É um serviço pesado e muito sujo. — Avisou Francisco, quando soube do propósito do irmão.

— Pagam bem. — Respondeu Nicola, casmurro como sempre. — Já dei meu nome, qualquer hora vou trabalhar.

Francisco empregou-se na Casa Romana, do patrício Emilio Campanari. Era uma grande loja de tecidos, armarinhos, “secos e molhados”, ferragens, papelaria, etc. As quatro portas abriam-se diretamente para a praça principal da cidade e o movimento era intenso.

Nos fundos do edifício, o proprietário estava construindo um barracão com piso ladrilhado e paredes rebocadas.

— Aqui vou instalar uma fabrica de cerveja.

Francisco trabalhava o dia todo no atendimento dos fregueses. Usava um longo avental de pano, feito de saco de farinha de trigo. Diligente e prestativo, alcançou em poucos meses a confiança do senhor Emílio, que prometeu:

— Assim que estiver montada a fabrica de cerveja, você vai tomar conta.

— Mas nada entendo de fazer cerveja. Se fosse vinho, sei como se faz. — Argumentou Francisco.

— Mas você aprende.

... ... ...

A adaptação de Francisco foi rápida. No trato com os fregueses, aprendeu os rudimentos da nova língua. Ao trabalhar na pequena cervejaria, aumentou seus conhecimentos e sem tardança era um exímio e cuidadoso cervejeiro. A receita do patrão era simples e produzia uma cerveja leve e clara. Era a “Romana”, muito vendida na cidade e nas vizinhanças. Francisco obteve um livro de receitas de bebidas, e ficou entendendo mais sobre fermentação, dosagens, graduação alcoólica, e demais particularidades necessárias à produção de diversos tipos de cerveja. Tentou e conseguiu fazer uma cerveja forte, mais ao agrado dos velhos italianos, que recebeu o nome de “Roma Forte”.

Nicola e Beatriz entendiam menos a nova língua. Ele, porque trabalhando como magarefe no matadouro, pouca conversa mantinha com os companheiros de serviço. Ela, que permanecia o dia inteiro em casa, cuidado da comida, das roupas e da casa, também pouco falava nos seus curtos encontros com as vizinhas.

O ganho de Francisco era suficiente para o aluguel e a manutenção da casa e compra de alguma roupa ou calçados. Nicola, cujo emprego rendia pouco, mas ajudava nas despesas da casa. Mas para Francesco estava bom: adquiria experiência, conservava seu capital intocado e sonhava com o dia em que teria seu próprio negócio.

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Os anos passavam com pachorra. Nada de extraordinário acontecia. 1892, 1893, 1894, 1895...

No principio de 1895, Bruno, que trabalhava como gerente de hotel importante, anunciou para os amigos:

— Vou deixar o hotel.

— E que coisa vai fazer? — Indagou Francisco.

— Estou de mudança. Vou para Monte Santo. Vou ter meu próprio hotel.

Esta notícia surpreendeu a todos, principalmente Francisco. Mal sabia ele que a decisão de Bruno e Cornélia também iria ser a causa de drástica mudança em sua vida e nas vidas de seus irmãos, Nicola e Beatriz.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 7 de março de 2009

Conto # 531 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 18/11/2014
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