530-TIO GORDO- Biografia de Francisco Curcio-2a. parte

TIO GORDO

2ª. Parte – A viagem para o Brasil

Cronologia–2a. parte

1891 – 24.09.1891 – Francesco parte de Nápoles (26 anos) no Navio Caffaro-2 de Nápoles

1891 – 15.10.1891 – Chegada do Caffaro-2 em Santos

Em 1891, Francesco estava com 26 anos. Era um homem de estatura mediana. Os anos de caserna e de exercícios físicos lhe deram um porte elegante. Cabeça erguida, peito estufado, os ombros altos e o andar em passadas largas faziam-no parecer mais alto do que realmente era. Loiro, usava o cabelo curto, bem penteado. As mãos grandes revelavam-se delicadas ao cumprimentar as pessoas ou fazer trabalhos delicados. O corpo forte indicava bem sua origem mediterrânea.

No porto de Nápoles estavam, além do pai e da mãe, estavam também tio Alberico, tia Mafalda e os cinco primos. Gigliola e Catarina, as duas filhas, jovens loiras e altas, se destacavam entre a multidão.

A despedida, como em todos os acontecimentos que acontece entre os habitantes da península, foi dramática, cheio de lágrimas, de abraços e de beijos. Francesco abraçava e beijava a todos, especialmente a mãe, com carinho e ternura.

— Bambino mio! Meu coração vai derreter, de tanta dor. — A mãe não conseguia reter as lágrimas e os soluços. — Que Deus te abençoe.

O pai se fazia de forte, mas os olhos estavam igualmente lacrimejantes:

— Mio Francesco! A vida vai ser muito triste para nós, sem você, sem Nicola e Beatriz. Deus os acompanhe.

— Volto breve, papá, não se preocupe. Fico rico e venho buscar o senhor e a mamma

— Arrivederci! Amo vocês. Vou guardar todos no meu coração. — Dona Maria não sabia a quem abraçar. Ora se agarrava a Nicola, ora a Francesco, e parecia não querer libertar Beatrice de seus braços.

Tio Alberico foi enérgico:

— Não deixe de mandar notícias. Escreva assim que chegar ao novo mundo. Mande para meu endereço, em Salerno, que é mais rápido.

— Sim, sim, prometo que mando notícias nossas assim que chegar. — Francesco respondeu.

Todos choravam. Lenços coloridos enxugavam lágrimas e eram em seguida agitados.

Francesco providenciou a subida de suas malas até o navio. Abraçaram-se mais uma vez e subiram a rampa pela última vez.

Espremidos entre os patrícios debruçados na amurada, abanavam as mãos, agitavam lenços, jogavam beijos aos pais, cuja dor da partida dos três filhos era imensurável.

Ao meio dia, todos os passageiros já estavam no navio. A rampa de acesso foi levantada e o navio emitiu um apito longo, anunciando a partida. Era o dia 24 de setembro de 1891.

... ... ...

O vapor Caffaro-2 era um navio moderno, com dois andares de cabinas e capacidade para quinhentos passageiros. De suas três chaminés a fumaça negra era uma indicação segura da velocidade do transatlântico. Os passageiros, todos imigrantes, foram distribuídos pelas cabines. Não havia passageiros de 1ª. ou 2ª. classe. O navio fora fretado, como muitos outros, especialmente para transportar imigrantes e partiu do porto de Nápoles, com destino ao porto de Santos, no Brasil.

Grande parte dos imigrantes o Caffaro-2 era constituída de agricultores que, ao chegar a Santos, já teriam destino certo: o trabalho nas grandes fazendas de café nos estados de Minas Gerais e São Paulo. Seus destinos e futuros patrões (que pagavam parte da passagem) estavam determinados. Uma pequena minoria, na qual estava Francesco, Nicola e Beatrice vinham livres desse tipo de vínculo, o que era considerado, na ocasião, uma desvantagem.

— Mas, como! Vocês não sabem onde vão trabalhar? É uma loucura, uma aventura perigosa! — Diziam os companheiros de viagem aos três irmãos.

— Temos alguns primos que já estão no Brasil e eles vão nos ajudar. — Francesco, por prudência e cuidado, não revelava que levava um bom capital para iniciar um negócio no Brasil.

Francesco e Nicola ocuparam uma cabine no mesmo andar da cabine onde Beatrice estava com outra passageira. Ao iniciar a viagem tudo era novidade. Nos primeiros dias, os enjoos causados pelo balanço do navio eram constantes e os passageiros não se afastavam muito das cabines. Mas após uma semana, acostumados, passaram a se agrupar e a se distrair. Os homens passavam os dias jogando cartas, conversando sobre o futuro. As mulheres mostravam-se saudosas e procuravam se consolar mutuamente.

Francesco trouxera consigo alguns livros de Torquato Tasso, presente do tio Alberico, e dedicava muito tempo à leitura. Entre Diálogos, Cartas e Aminta, releu alguns trechos de Jerusalém Libertada. Em um outro livro sobre história de Roma, teve conhecimento do mitológico personagem Marco Cúrcio, cuja façanha fez questão de narrar aos irmãos:

— Marcos Cúrcio é um personagem lendário, não sabemos se existiu realmente. Segundo a tradição romana, após um terremoto que cavou um abismo onde estão hoje as ruínas do Fórum, os áuguros declararam que o tal abismo só poderia ser preenchido com o tesouro mais precioso de Roma.

— Quem eram esses áuguros? — perguntou Beatrice, atenta ouvinte da narrativa.

— Auguro era um sacerdote romano que previa acontecimentos. Uma espécie de adivinho que fazia suas previsões, ou adivinhações, observando o canto e o voo das aves. — Francisco explicava com paciência. E continuava a narrativa:

“Todas as manhãs, uma multidão se reunia à beira do abismo, na expectativa de que algo acontecesse, de que, de um modo ou de outro, os deuses tivessem compaixão e enchessem a imensa fenda, cujo fundo era impossível de se ver.

Então, um patrício todos conheciam por Cúrcio, cujo nome todo era Marcos Cúrcio, ofereceu-se para fechar o abismo. Os patrícios ali reunidos duvidaram

— Mas como? Que poderá você fazer para preencher este imenso buraco? — Perguntaram os outros patrícios, duvidando da palavra de Cúrcio.

Montado em seu cavalo branco como a neve, de crina dourada e imponente presença, gritou para seus companheiros.

— Qual é o tesouro mais valioso de Roma?

Ouviu-se uma confusão de vozes, cada qual tentando dar uma resposta que achava adequada. Sem dar ouvidos ao vozerio, ele gritou mais alto:

— O tesouro de Roma, patrícios, está na valentia e no heroísmo de seus cidadãos!

Assim que terminou o curto discurso, esporeou o cavalo que, sem titubear um só momento, precipitou-se no abismo.

Cavalo e cavaleiro desapareceram na imensa e profunda cratera. Uma convulsão abalou mais uma vez o terreno, fechando-se sobre o abismo, que desapareceu por completo. Em minutos, o terreno estava plano e liso, como sempre fora antes. “

— Este homem era da nossa família? — Indagou Nicola.

— Não, com certeza não. Esta história é uma lenda, nem sabemos se aconteceu ou não. Mas o fato é conhecido como O Sacrifício de Cúrcio e esta expressão é usada como um provérbio, para se referir a atos de abnegação e sacrifício pela pátria.

... ... ...

Durante as três semanas de viagem, os irmãos permaneciam sempre juntos. Francesco era desenvolto, conversava com todos, se interessava pelas histórias dos que estavam por perto. Nicola, dois anos mais moço do que Francesco, era um tanto desligado, não prestava muita atenção, e vivia fazendo perguntas bobas não só ao irmão e à Beatrice, como aos outros passageiros.

Uma tarde, um dos passageiros, um rapaz ainda imberbe, gritou para que todos ouvissem, apontando para Nicola:

— Aquele lá é um retardado!

Francesco estava por perto e ouviu. Sem se perturbar, dirigiu-se ao rapaz, pegou-o pelo cangote e trouxe para bem perto de Nicola.

— Peça desculpas ao meu irmão.

O rapaz, pego de surpresa e subjugado pelas poderosas mãos de Francesco, meio relutante, falou:

— Sim, sim, peço desculpas.

— Diga que ele não é retardado. — Francisco aproximou-se o rapaz de Nicola, que, assistia tudo com uma expressão meio estúpida.

— Sim, ele não é retardado.

— Diga que ele é mais inteligente que você. — Francesco insistia.

— Sim, ele é mais inteligente do que eu.

Francesco não estava com raiva, até achava graça na presteza com que o rapaz obedecia a suas ordens.

— Agora, prometa que jamais ofenderá qualquer um outro passageiro deste navio.

— Sim, prometo. Não falo mais nada de ofensivo a ninguém.

— Está bem. Vamos acreditar em você — Disse Francesco ao rapaz e à pequena multidão reunida em torno dos três. Largou o rapaz, pegou Nicola pelo braço e foi para sua cabine.

Depois do acontecido, Francesco passou a ser tratado com respeito, e por diversas vezes, foi chamado para resolver pequenas questões que surgiam entre os passageiros.

Beatrice tinha vinte anos. Era uma moça de baixa estatura, pele muito alva e cabelos loiros. Não se destacava nem pelo porte nem pela beleza. Gostava de conversar e se fez de imediato conhecida das outras jovens.Era animada, amava cantar. Iniciava as canções com uma ou duas amigas, e logo, uma dezena estava ao redor, fazendo coro às músicas da doce terra de Campagna, de Nápoles ou Sorrento. Serviçal e prestativa, ajudava as mães no cuidado com as crianças — e como havia crianças no navio! — e em outros afazeres. Era simpática e todos gostavam de sua presença.

... ... ...

Enfim, após três semanas, o Scaffaro-2 chegou ao porto de destino: Santos. Foi no dia 15 de outubro de 1891.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 27 de janeiro de 2009

Conto # 530 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 18/11/2014
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