519-APÓS COLISÃO NÃO BEBA - Deputado x Caipira

O Deputado Lírio Lindomar Loureiro estava mais do que fascinado pelo seu novo carro, um WMW de última geração, enorme, potente, vermelho-flamante, estofamento em couro e facílimo de dirigir. Recebera de presente de uma empreiteira, por sua ajuda na concorrência de um grande empreendimento do governo federal, e assim, a sua felicidade era total.

Na euforia, cismou de ir até sua cidade natal dirigindo a poderosa e linda máquina. Iria exibí-la aos amigos e correligionários e, o que era mais importante, aos inimigos políticos.

=Vou mostrar pra eles quem é Lili Loureiro. = Disse à mulher, ao sair de casa.

=Cuidado = Ela recomendou. = Na vá parar em boteco da estrada para bebericar. Sabe que agora, com a lei seca pra motoristas, esse seu costume pode lhe dar dor de cabeça.

=Não se preocupe, querida. Vou direto e reto, não paro nem pra fazer xixi.

E lá foi o deputado Lili dirigindo, pegando mais de 200 quilômetros quando as poucas retas da estrada permitiam.

Dizem que coincidências não existem. Mas acho que existem sim. Pois naquela mesma manhã de sábado seu Venâncio precisou ir à cidade comprar uns apetrechos para consertar o arado. Pegou seu fusquinha azul celeste, ano 1964, e lá foi, pela estradinha de terra, a não mais do que vinte quilômetros por hora.

A estradinha desembocava na rodovia. Distraído como ele só, seu Venâncio entrou pelo asfalto sem prestar atenção no carrão que vinha em alta velocidade. O choque foi inevitável. O imenso carro vermelho pegou o fusquinha e jogou-o no acostamento.

Não houve feridos. Ambos os motoristas saíram ilesos. Seu Venâncio olhou para o fusquinha, todo amassado, mas ainda sobre as quatro rodas. O deputado Lírio, sem sequer ver os pequenos arranhões do seu carro, pulou que nem uma jaguatirica na direção de seu Venâncio.

=Olha só que você fez, seu caipira! Amassou meu carro novo. = E destampou num xingatório, que terminou com aquela clássica pergunta de autoridade brasileira:

=Cê sabe com quem ta falando? (o caipira ainda não tinha dito uma palavra sequer) =EU SOU o deputado Lírio Loureiro.

O velho Venâncio passou os dedos pela boca, amaciou o bigode e disse:

=Muito prazer, deputado. Mas o senhor ta muito nervoso. Assim não dá pra gente acertar as coisas.

Foi até o fusquinha, de onde tirou uma garrafa de cachaça e um copinho.

=Óia, toma uma desta branquinha, pra móde o senhor se acalmar e a gente conversar.

Lili Loureiro, que não enjeitava uma, ainda que nervoso, tomou o copinho de pinga.

=Acarmou, deputado?

=Que acalmei, que nada, Agora tou é mais furioso! = E lá veio outra enxurrada de desaforos por cima do caipira.

=Oia, dotor, assim num dá pra gente chegar num acordo. Toma outra dose pro sinhor se acarmar. = E ofereceu outra dose, que o deputado jogou goela abaixo.

=Acarmou. Deputado?

=Que nada! Tou é ficando cada vez mais bravo. = E mais desaforos caíram sobre seu Venâncio..

E assim foi por uma boa meia hora: o deputado dizendo desaforos e seu Venâncio oferecendo os copinhos de cachaça. Lá pelo décimo copinho (ou seja, mais de meia garrafa da branquinha) seu Venâncio insistiu:

=Então deputado, tá mais carmo? Podemo conversá, mode acertá tudo?

=Ta bom (hic), tá bom (hic). Vamos ver como senhor vai me pagar esse prejuízo.

=Intão, tá = Respondeu o velho Venâncio. = Vou usar aqui meu celular e chamar a pulicia, pedir pra trazer o bafômetro e ver quem tá com a razão.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 23 de novembro de 2008

Conto # 519 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 13/11/2014
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