517-A CONFISSÃO DO DEPUTADO- Política & Religião

A paróquia da pequena cidade estava agitada com a comemoração do cinqüentenário de ordenação do Padre Ranzine. Há meio século a figura do sacerdote era uma constante na vida dos fiéis de São Roque da Serra.

Assim que terminara os estudos teológicos e fizera os votos, ele foi nomeado para atender à comunidade serrana. Passados os cinqüenta anos, era natural que todos se entusiasmassem com as celebrações do grande evento.

Dentre as comemorações, estava a homenagem que o deputado Lírio Lindomar Loureiro prometera fazer no domingo, após a missa principal, das nove da manhã.

A igreja estava repleta, pois além do carinho dos paroquianos para com o líder espiritual, havia a curiosidade acerca da homenagem. Esta tinha sido anunciada aos quatro ventos pelos amigos e correligionários do deputado que, de Brasília, mandou que fosse divulgada até nas cidades vizinhas onde recebera votação.

Terminada a missa, o padre foi à sacristia, onde trocou os paramentos da cerimônia pela batina nova, preparada pela confraria das piedosas “Filhas de Maria”. Voltando ao altar, sentou-se na poltrona especial, colocada do lado direito do altar e aguardou a chegada do deputado.

Passaram-se cinco, dez, quinze, vinte minutos, meia hora, e nada do deputado aparecer. Os fiéis foram ficando impacientes, bem como o homenageado. Ao completar quarenta e cinco minutos de espera, o padre Ranzine, que sempre se pautara pela pontualidade, levantou-se e dirigiu-se ao povo.

— Queridos fiéis, como o deputado está demorando, vou fazer o meu discurso de agradecimento. Assim, quando ele chegar, fará sua homenagem e vocês não terão de esperar muito mais tempo.

“ Quando cheguei a esta paróquia, recém saído do seminário, ainda sem experiência, tive uma impressão muito ruim daqui. Foi devido à primeira confissão que ouvi. Me lembro bem, pois a primeira impressão é que fica gravada na cabeça da gente. A primeira pessoa de que se confessou me disse que tinha dado um desfalque na firma, e que para cobrir o desfalque, roubara dinheiro do pai e apropriara da pensão da mãe. Tinha forjado firmas em cheques falsos e mantinha relações com a esposa do chefe. E que tempos atrás se dedicara ao tráfico de drogas. E o pior de tudo, confessou que tinha transmitido uma doença à própria irmã.

“ Fiquei chocado. Pensei que o senhor bispo tinha me enviado a um lugar horrível, talvez para testar minha competência ou minha fé.

“ Mas à medida que o tempo foi passando, fui conhecendo mais o pessoal. Convivi com vocês, seus pais e até com os avós de muito aqui presentes, e pude verificar que se tratava de gente responsável, com valores morais e religiosos bem definidos, praticantes fieis da religião. Desta maneira passei os cinqüenta anos aqui, anos maravilhosos, o que considero uma bênção de Deus.”

Neste momento, chega o deputado, que entra com toda a pompa pela nave da Igreja. Entrega ao padre Ranzine um vistoso buquê de flores e um pacote com o seu presente. E antes mesmo que o padre abrisse o embrulho, pediu desculpas pelo atraso e começou o discurso:

— Sou um dos paroquianos mais felizes desta terra. Jamais me esquecerei do dia em que o padre Ranzine chegou à nossa cidade. Como poderia? Tive a honra de ser o primeiro a me confessar com ele.

Alguns cochichos logo se transformaram em risos e a voz do deputado sumiu entre a confusão de vozes e gargalhadas.

Padre Ranzine, foi em socorro do deputado: levantou-se, gesticulou braço direito, abençoando os fiéis, e retirou-se para a sacristia.

Para o deputado ficou a lição: jamais chegar atrasado. E o padre Ranzine também aprendeu que nunca se deve colocar o carro na frente dos bois.

ANTONIO GOBBO

Conto # 517 da Série Milistórias –

Belo Horizonte, 20 de novembro de 2008

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 13/11/2014
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