O Enviado
O Enviado
São Paulo, janeiro de 2024.
Prezada Milena,
Espero que essa carta chegue a você, de alguma forma. Parece uma tentativa ingênua. Cheguei na cidade na sexta-feira, e fui direto ao Centro de Amparo ao Idoso XV de Novembro. Um homem chamado Severino, cordial e com uma disposição invejável me reteve na portaria as 21:00 hs.
- A diretoria está reunida - explicou ele - trabalho aqui há mais de 20 anos e isso nunca ocorreu. Eles sempre se reúnem nas quartas feiras por volta das duas da tarde. Que coisa.... O sr. é o "enviado"?
Meneei com a cabeça afirmativamente.
Conversamos sobre trivialidades durante dez minutos, até que uma moça de avental branco chamada Luciana apareceu, para me conduzir ao recinto onde se encontravam os que estavam a minha espera. Passamos por uma mulher ajoelhada, esfregando o chão. As velas conferiam aos corredores uma visão lúgubre e vozes soltas vinham de todo lugar. Vi algumas portas entreabertas e ouvi cochichos.
Na sala da diretoria havia lamparinas a querosene e assim era possível divisar melhor os semblantes. Oito mulheres e um homem discutiam o que parecia um tema contido e ao me verem se calaram.
Não houve formalidade de espécie alguma. Apenas sentamo-nos e de imediato o homem pôs-se a falar:
- Isso é assassinato. Saibam que sou contra.
- Já sabemos a sua posição, Gaspar - retrucou de modo ríspido uma mulher baixa chamada Janete.
- Gostaria que ele soubesse - disse Gaspar, apontando para mim com o queixo.
Findo um pequeno desconforto, indaguei:
- Em que pé está a coisa?
As mulheres reagiram como se saltassem sobre a frase, cada uma com um retalho de reivindicações, e foi necessário que Janete, com uma firmeza que parecia assombrada pelo bruxulear dos tocos de velas e pelas lamparinas, as contivesse, fornecendo um breve sumário.
- Chegou aqui há 2 anos, já completamente louco. Xinga, joga a comida no chão, urina.... Veja, isso acontece com alguns idosos....
- Ele continua bebendo? - interrompi.
Uma das mulheres começou a chorar. Outra disse que os malditos que o seguem entraram na casa uma noite e executaram a Cecília de Deus, que tem Alzheimer, porque ela teria dito....
- Muitos aqui tem a Alzheimer - atalhou Janete e com um gesto de mão encerrou o assunto.
- Que idade ele está? - indaguei.
Gaspar responde prontamente que se ele nasceu em 1945, então está com 79 anos. Encolhi os ombros, pois nunca soube em que ano ele nascera. Com as mãos espalmadas e a coluna bem ereta, Janete explanou que dois anos antes tinham cerca de 300 idosos na casa, mas com a chegada dele, e então os acessos de loucura, os correligionários violentos, a execução da Cecília, bem, ela teve que se desfazer de um pavilhão inteiro e com isso....
- O sr. trouxe a encomenda? - atalhou Gaspar que parecia, no fundo, exasperado.
- Sim - respondi - mas não vou dar isso a ele. Não sou assassino.
- Tudo o que o sr. vai fazer é colocar suas mãos no copo. Mais nada. De manhã, ou no outro dia, quando levarem o corpo, vão colher impressões digitais de todos aqui, dos faxineiros, enfermeiras, médicos, cuidadores, auxiliares. As suas não constam no Cadastro Único, certo?
- Não - respondi - saí do país em 2012. Fizeram esse cadastro quando, em 2017, não foi?
Ninguém disse nada. Dezoito pares de olhos me fitavam como pássaros tristes de uma floresta incinerada. Coloquei o envelope em cima da mesa repetindo basicamente o que me disseram: trata-se de um produto moderno, absolutamente eficaz e que não deixa traços de espécie alguma.
Janete colocou um copo em cima da mesa e pediu que eu o segurasse. Assim o fiz e daí tocaram-no com luvas e o inseriram num saco plástico.
Levantei-me, querendo sair logo dali.
As mulheres permaneceram sentadas ao passo que Gaspar se levantou e me olhando diretamente nos olhos, perguntou:
- Por que o sr. aceitou essa incumbência?
- Por dinheiro - respondi - por que mais as pessoas fazem as coisas? Ah, alguém de vocês poderia me dizer onde fica a igreja de Santa Ana? Sei que é próxima desse lugar, pois há muitos anos...
Janete, que até então sugeria uma firmeza de aço, não se conteve. E, quando rui o arrimo, a estrutura vem abaixo. Ela e as outras mulheres desandaram a chorar, Gaspar se sentou com feição desolada, Luciana entrou e foi imediatamente convidada a se retirar, eu não sabia o que estava acontecendo e por inércia me sentei também, Janete convulsionava, isso durou sabe-se lá quanto tempo, apagaram-se os tocos das velas, o facho da lamparina parecia ir e vir, e foi quando uma senhora esquálida, alta e de cabelos rigorosamente brancos e repartidos ao meio, de nome Irene, levantou-se dizendo:
- O sr. não sabe?
Se eu não estivesse sentado, sentaria.
- De que? - preferível não ter perguntado.
Janete recompôs sua autoridade face aos demais e lentamente, colocando-se de pé, disse com um sorriso que sugeria cinismo:
- O sr. disse que saiu do Brasil em 2012, onde esteve?
- Em vários lugares, até 2018. Nesse ano me instalei na Zona Neutra da Europa e....
- Queimaram todas as igrejas de São Paulo! - exclamou ela.
- Do Brasil! - bradou Irene.
- Isso não se pode afirmar, Irene, por favor! - acudiu Gaspar, com uma visível preocupação com algo invisível.
- É o que eles fazem, os....
- Não diga, Irene, não diga - irrompeu Janete, tapando-lhe a boca com as mãos.
Todos ficamos num doloroso silêncio. Janete pôs a mão em meu ombro e seus olhos me contemplavam com pesar diante do véu da inocência prestes a ser rasgado.
Tomei um gole de água de uma moringa e, como que balbuciando, falei que a partir de 2018 todas as notícias que vinham do Brasil eram sobre praias, carnaval, futebol, mas era claro que havia um poderoso filtro, ainda assim os rumores...
- Em abril de 2018 - fez Janete num sibilo - começaram a queimar todas as igrejas de São Paulo: uma após a outra. Nossa Senhora de Fátima, no Sumaré, foi a primeira. No dia seguinte incendiaram Nossa Senhora Aparecida, em Moema.
- Nossa Senhora de Shoenstad - atalhou Gaspar, com lágrimas nos olhos.
- Imaculada Conceição, Sagrado Coração de Jesus, Sagrada Família - falava Irene, como um robô fantasmagórico.
Chorou-se muito naquela sala. Quem lembrava de uma capela, falava o nome e as vezes o local, num timbre de tristeza morna e cada uma das mulheres dizia: Cruz Torta, no Alto de Pinheiros, São José do Ipiranga, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora da Penha, Santa Generosa, no Paraíso, Verbo Divino, na chácara S. Antônio, Santa Cecília, Nossa Senhora do Brasil, nos Jardins, Santo Antônio, na vila Olímpia, Santo Expedito, São Dimas, São Gabriel....
Prezada Milena, vou parar aqui.
Me é muito penoso prosseguir nessa carta.
Enfim, são essas as notícias e quisera não ser eu o portador.
Me despedi daquelas pessoas com um misto de emoção nenhuma e com um tufão interior de culpa e vergonha. Nenhum de nós, ali, será lembrado como "um nome que ficou por aí, feito clarão de bondade, de doçura, de delicadeza ao céu, dessas que se vão fazendo cada vez mais raras num mundo velho, sem porteira...".
(Imagem: Henry Wallis, Inglês, 1830, The Stonebreaker, 1857, Óleo sobre tela)
O Enviado
São Paulo, janeiro de 2024.
Prezada Milena,
Espero que essa carta chegue a você, de alguma forma. Parece uma tentativa ingênua. Cheguei na cidade na sexta-feira, e fui direto ao Centro de Amparo ao Idoso XV de Novembro. Um homem chamado Severino, cordial e com uma disposição invejável me reteve na portaria as 21:00 hs.
- A diretoria está reunida - explicou ele - trabalho aqui há mais de 20 anos e isso nunca ocorreu. Eles sempre se reúnem nas quartas feiras por volta das duas da tarde. Que coisa.... O sr. é o "enviado"?
Meneei com a cabeça afirmativamente.
Conversamos sobre trivialidades durante dez minutos, até que uma moça de avental branco chamada Luciana apareceu, para me conduzir ao recinto onde se encontravam os que estavam a minha espera. Passamos por uma mulher ajoelhada, esfregando o chão. As velas conferiam aos corredores uma visão lúgubre e vozes soltas vinham de todo lugar. Vi algumas portas entreabertas e ouvi cochichos.
Na sala da diretoria havia lamparinas a querosene e assim era possível divisar melhor os semblantes. Oito mulheres e um homem discutiam o que parecia um tema contido e ao me verem se calaram.
Não houve formalidade de espécie alguma. Apenas sentamo-nos e de imediato o homem pôs-se a falar:
- Isso é assassinato. Saibam que sou contra.
- Já sabemos a sua posição, Gaspar - retrucou de modo ríspido uma mulher baixa chamada Janete.
- Gostaria que ele soubesse - disse Gaspar, apontando para mim com o queixo.
Findo um pequeno desconforto, indaguei:
- Em que pé está a coisa?
As mulheres reagiram como se saltassem sobre a frase, cada uma com um retalho de reivindicações, e foi necessário que Janete, com uma firmeza que parecia assombrada pelo bruxulear dos tocos de velas e pelas lamparinas, as contivesse, fornecendo um breve sumário.
- Chegou aqui há 2 anos, já completamente louco. Xinga, joga a comida no chão, urina.... Veja, isso acontece com alguns idosos....
- Ele continua bebendo? - interrompi.
Uma das mulheres começou a chorar. Outra disse que os malditos que o seguem entraram na casa uma noite e executaram a Cecília de Deus, que tem Alzheimer, porque ela teria dito....
- Muitos aqui tem a Alzheimer - atalhou Janete e com um gesto de mão encerrou o assunto.
- Que idade ele está? - indaguei.
Gaspar responde prontamente que se ele nasceu em 1945, então está com 79 anos. Encolhi os ombros, pois nunca soube em que ano ele nascera. Com as mãos espalmadas e a coluna bem ereta, Janete explanou que dois anos antes tinham cerca de 300 idosos na casa, mas com a chegada dele, e então os acessos de loucura, os correligionários violentos, a execução da Cecília, bem, ela teve que se desfazer de um pavilhão inteiro e com isso....
- O sr. trouxe a encomenda? - atalhou Gaspar que parecia, no fundo, exasperado.
- Sim - respondi - mas não vou dar isso a ele. Não sou assassino.
- Tudo o que o sr. vai fazer é colocar suas mãos no copo. Mais nada. De manhã, ou no outro dia, quando levarem o corpo, vão colher impressões digitais de todos aqui, dos faxineiros, enfermeiras, médicos, cuidadores, auxiliares. As suas não constam no Cadastro Único, certo?
- Não - respondi - saí do país em 2012. Fizeram esse cadastro quando, em 2017, não foi?
Ninguém disse nada. Dezoito pares de olhos me fitavam como pássaros tristes de uma floresta incinerada. Coloquei o envelope em cima da mesa repetindo basicamente o que me disseram: trata-se de um produto moderno, absolutamente eficaz e que não deixa traços de espécie alguma.
Janete colocou um copo em cima da mesa e pediu que eu o segurasse. Assim o fiz e daí tocaram-no com luvas e o inseriram num saco plástico.
Levantei-me, querendo sair logo dali.
As mulheres permaneceram sentadas ao passo que Gaspar se levantou e me olhando diretamente nos olhos, perguntou:
- Por que o sr. aceitou essa incumbência?
- Por dinheiro - respondi - por que mais as pessoas fazem as coisas? Ah, alguém de vocês poderia me dizer onde fica a igreja de Santa Ana? Sei que é próxima desse lugar, pois há muitos anos...
Janete, que até então sugeria uma firmeza de aço, não se conteve. E, quando rui o arrimo, a estrutura vem abaixo. Ela e as outras mulheres desandaram a chorar, Gaspar se sentou com feição desolada, Luciana entrou e foi imediatamente convidada a se retirar, eu não sabia o que estava acontecendo e por inércia me sentei também, Janete convulsionava, isso durou sabe-se lá quanto tempo, apagaram-se os tocos das velas, o facho da lamparina parecia ir e vir, e foi quando uma senhora esquálida, alta e de cabelos rigorosamente brancos e repartidos ao meio, de nome Irene, levantou-se dizendo:
- O sr. não sabe?
Se eu não estivesse sentado, sentaria.
- De que? - preferível não ter perguntado.
Janete recompôs sua autoridade face aos demais e lentamente, colocando-se de pé, disse com um sorriso que sugeria cinismo:
- O sr. disse que saiu do Brasil em 2012, onde esteve?
- Em vários lugares, até 2018. Nesse ano me instalei na Zona Neutra da Europa e....
- Queimaram todas as igrejas de São Paulo! - exclamou ela.
- Do Brasil! - bradou Irene.
- Isso não se pode afirmar, Irene, por favor! - acudiu Gaspar, com uma visível preocupação com algo invisível.
- É o que eles fazem, os....
- Não diga, Irene, não diga - irrompeu Janete, tapando-lhe a boca com as mãos.
Todos ficamos num doloroso silêncio. Janete pôs a mão em meu ombro e seus olhos me contemplavam com pesar diante do véu da inocência prestes a ser rasgado.
Tomei um gole de água de uma moringa e, como que balbuciando, falei que a partir de 2018 todas as notícias que vinham do Brasil eram sobre praias, carnaval, futebol, mas era claro que havia um poderoso filtro, ainda assim os rumores...
- Em abril de 2018 - fez Janete num sibilo - começaram a queimar todas as igrejas de São Paulo: uma após a outra. Nossa Senhora de Fátima, no Sumaré, foi a primeira. No dia seguinte incendiaram Nossa Senhora Aparecida, em Moema.
- Nossa Senhora de Shoenstad - atalhou Gaspar, com lágrimas nos olhos.
- Imaculada Conceição, Sagrado Coração de Jesus, Sagrada Família - falava Irene, como um robô fantasmagórico.
Chorou-se muito naquela sala. Quem lembrava de uma capela, falava o nome e as vezes o local, num timbre de tristeza morna e cada uma das mulheres dizia: Cruz Torta, no Alto de Pinheiros, São José do Ipiranga, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora da Penha, Santa Generosa, no Paraíso, Verbo Divino, na chácara S. Antônio, Santa Cecília, Nossa Senhora do Brasil, nos Jardins, Santo Antônio, na vila Olímpia, Santo Expedito, São Dimas, São Gabriel....
Prezada Milena, vou parar aqui.
Me é muito penoso prosseguir nessa carta.
Enfim, são essas as notícias e quisera não ser eu o portador.
Me despedi daquelas pessoas com um misto de emoção nenhuma e com um tufão interior de culpa e vergonha. Nenhum de nós, ali, será lembrado como "um nome que ficou por aí, feito clarão de bondade, de doçura, de delicadeza ao céu, dessas que se vão fazendo cada vez mais raras num mundo velho, sem porteira...".
(Imagem: Henry Wallis, Inglês, 1830, The Stonebreaker, 1857, Óleo sobre tela)