516-PUTIERO COM UÍSQUE-MISTURA MORTAL - Memórias

A estância ficava a poucos quilômetros da cidade de Tapes. Os convidados foram chegando em charretes, carros, camionetas e até uma jardineira cedida pelo proprietário da empresa de coletivos de Porto Alegre, com algumas pessoas da capital.

Eu fazia parte do grupo de funcionários do Banco do Brasil da pequena cidade. Fui no carro do gerente, seu Volkman, com mais quatro colegas. Quando chegamos, e nem oito horas eram, já havia brasa na vala do o churrasco e as mantas de carne, estendidas em grossas varas de bambu-açu, aguardavam o momento de serem colocadas para assar.

A casa-sede, enorme, estendia-se altaneira sobre uma ligeira elevação, dominando a pradaria que se estendia além do horizonte. De lá desciam algumas moças e rapazes, trazendo quitutes para o café, servido numa ampla mesa colocada à sombra de centenários sicômoros e chorões. Bules de café, leite, entremeados de pratos de quitandas. Uma garrafa de uísque estava no meio, aberta e já pela metade.

Os tradicionais (a maioria, claro) faziam rodas do chimarrão. Os citadinos enchiam xícaras de café. Eu e Licurgo, que já havíamos tomado café na pensão onde morávamos, ficamos de olho no livro de Balantines e resolvemos encarar uma dose — só pra esquentar.

Com os copos pela metade de uísque cowboy, andamos por entre o pessoal, conversando aqui e ali, contando algumas piadas. A manhã estava fria E pelas nove horas ainda havia restos de névoa por sobre a pastaria sem fim. Aquecidos e entusiasmados pela primeira dose, voltamos ao Balantines, que, também preferido por outros convivas, acabou-se com nossa segunda incursão. Logo apareceu outra garrafa, pois a fartura era a característica daquela festa.

Debaixo de uma das árvores, um panelão estava ao fogo, em rústico fogão de pedras. Fomos ver do que se tratava.

=Aqui estamos preparando o putiero. = Informou um dos peões, vestido a caráter, chapéu de aba larga quebrado na testa.

=Putiero? = Estranhei o nome. = É de comer?

=Bah, tchê, ainda não provaste?

=Nunca ouvi falar.

=Pois presta atenção, galeguinho. = Ele tinha razão: eu era baixinho e muito loiro. Os colegas riram. = Aqui neste panelão já estão cozinhando os miúdos das rezes: rins, coração, fígado... E como mistura, tens milho verde, pedaços de costela, carne de porco com bastante toucinho defumado. Já está cozinhando desde a matina e logo estará no ponto para ser servido.

=Ouvi falar que até os testículos do macho tão cozinhando aí? = Um dos ouvintes perguntou. O gaúcho só olhou para quem perguntava e abriu um sorriso largo, sem dizer nada.

E por ali fiquei, enturmado com os colegas do banco, as professoras do único grupo escolar da cidade e com as quais a gente estava sempre, e mais alguns amigos. Não larguei do copo um instante e fui diversas vezes reforçar o cowboy.

Intervalo para considerações sobre o putiero: Há uma confusão, principalmente em Porto Alegre e adjacências (e estávamos a apenas 50 quilômetros ao sul da capital, às margens da Lagoa dos Patos) entre sopa de ossos, caldo de mocotó e o putiero. A sopa de ossos é um caldo feito com ossos mal limpos, onde ficam aparas de carnes, fervido com água e sal, batatinha, abóbora, legumes e verduras em geral. O caldo de mocotó é feito com miúdos e ossos de porco, também fervido na água. Os ossos são retirados antes de ser servido o caldo. Já o putiero é um caldo espesso, feito justamente quando há churrasco, pois se aproveitam todos os miúdos (as vísceras comestíveis) da rês abatida. Acrescenta-se batatas, abóboras, milho verde e legumes que houver. Dizem que o putiero bom é como o porco da estância: um aproveitador de sobras. Mas não é bem assim, pois o cozido, feito em panelões para os muitos comensais do churrasco, é caprichado e saboroso.

Geralmente, é servido bem antes do churrasco, a fim de preparar o estômago para as carnes assadas. Ou no final do churrasco, para ajudar a digestão, como afirmam os peões.

Lá pelo meio dia, as carnes exalavam o cheiro gostoso do assado bem temperado com os diversos acepipes. Mas ainda não estavam no ponto. Eu já estava alto, não conseguia nem fazer um quatro com uma perna. Foi quando serviram o putiero.

AH! Que delícia! E que antídoto para os efeitos do álcool. Já nas primeiras colheradas, o caldo quente descendo fez com que o espírito dos cowboys se desvanecessem. Foi uma bendição.

Senti-me outro. Além de mitigar a fome, fez com que me apresenta-se novamente estável e coerente, pois, antes do putiero, já trocava palavras. Mas nem por isso larguei meu copo de cowboy. Tomando putiero e bebendo uísque ao mesmo tempo. Licurgo me avisou:

= Vai com calma, mineiro, se não acabas por fazer feio na festa.

Que calma nem meia calma! Repeti o prato (fundo) de putiero e mais um copo de uísque. Fiquei firme. Quando o churrasco foi servido, entrei de sola nas carnes, experimentando todas as partes (a que mais gostei foi o cupim, que experimentei pela primeira vez: macia e gordurosa, saborosa por demais).

E assim prosseguiu o churrasco pela tarde e até anoitecer. Um conjunto de música típica = gaita, bandoleon e violão = animou o ambiente a partir das quatro da tarde. Alguns pares começaram a dançar numa área de chão batido.

Dancei também, embora desajeitadamente, pois nunca havia ensaiado uma dança típica gaúcha. Mas a moça que me servia de par me conduziu e não fiz feio.

E por aí foi a coisa: carnes, uísque, música, dança, até pelas nove da noite, quando seu Volkman nos reuniu (eu e mais quatro colegas) para irmos embora. Ele estava sóbrio, e a volta foi tranqüila.

Cheguei na pensão ligeiramente alegre. Licurgo me ajudou subir a escada da frente. No quarto, deitei-me sem trocar de roupa e ferrei no sono.

Acordei na manhã seguinte com uma ressaca filha-da-mãe. Boca amarga, dor de cabeça, estômago enrolando e necessitando urgente de ir ao banheiro. Estava mais do que apertado. Que alívio senti ao liberar o que havia comido no dia anterior. Alguma iguaria havia funcionado como purgante e a defecada foi completa. Fiquei muitos bons minutos sentado na privada, sentindo o alívio.

Quando me levantei, dei uma olhada para o material e vi que era constituído, quase que somente por uma grossa lombriga, de uns 30 centímetros de comprimento, que certamente não resistiu aos muitos cowboys misturados com putiero = uma mistura verdadeiramente letal.

ANTONIO GOBBO – Belo Horizonte, 23 de setembro de 2008

Conto # 516 da Série Milistórias.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 12/11/2014
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