Comunhão literária
Os dedos tocam os teclados, formando frases tão desconexas quanto o seu pensamento. Excesso de palavras e sentimentos prontos para serem combinados e descobertos. O avanço dos ponteiros do relógio indica o tempo que Pedro perdeu tentando unir e recombinar sensações e situações em sua escrita. Angustiado, o rapaz sai para passear e analisar o mundo ao seu redor. Tudo se configura exatamente na mesmice a que ele está adaptado. Ou, terrivelmente, seus olhos se acostumaram ao que lhe parecia estranho antes.
A passos lentos, ele caminha. Olha crianças correndo atrás de uma bola, em uma perfeita simulação de campeonato de futebol. Lembrou-se da infância e das brincadeiras de que costumava participar. As famosas peladas da turma do bairro. A gritaria, o tumulto e a correria para marcar um gol, o último da partida que dera vitória ao seu time. Apesar de ter se sentido satisfeito, ele sabia que aquela realidade não era a dele. Talvez tenha sido por uns anos, mas a inquietação do menino o levou a buscar outros caminhos.
Mais à frente, sob a copa frondosa de uma árvore, um casal de namorados fazia um piquenique. A luz do sol incide nos rostos sorridentes. A imagem trouxe a Pedro recordações de sua adolescência. Sombrio e tímido, teve poucas namoradas. Apenas uma marcou a sua vida: Paola. Soubera que a menina, hoje mulher, havia se casado e tido um filho. Sentiu seu coração pulsar ao observar os jovens risonhos e partilhou a sensação da paixão que os envolvia. “Que seja doce enquanto durar”, desejou em silêncio. Ajeitou o boné e andou. Os cabelos pretos e lisos bagunçados estavam escondidos. Ele não tinha o hábito de penteá-los e evitava cortá-los.
Decidido, Pedro continuava a procurar algo que não sabia identificar. Sabia que seu coração, tenso e acelerado pela busca, necessitava de emoções que o movessem e levassem seus dedos a deslizar pelos teclados. As palavras eram suas companheiras. Refugiava-se nelas para encontrar o destino que lhe cabia. Mas elas escapavam nas teclas e, faceiras, se escondiam dele. Ria desesperado ao imaginar-se escarnecido por elas. Dava-lhes vida no papel, mas acreditava na independência delas e em suas ações. O rapaz, no fundo, era guiado pelas letras, ao contrário do que pensavam.
Em suas andanças, ele já se deparara com todas as faces do mundo. Sorrisos, gargalhadas, lágrimas de alegria ou raiva, atos de amor e ódio, simpatia, doença, saúde. Ia da mais pura felicidade à tristeza profunda em poucos segundos. Comovia-se com a dor do outro, que passava a ser sua até conseguir transformá-la em palavras. Via-se em cada linha traçada graciosamente por seus dedos. No entanto, o incômodo crescente em seu peito fazia com que ele perdesse as letras e as suas combinações exatas e certeiras.
Retomou a caminhada, mas mudou a direção. No momento de atravessar a rua, foi surpreendido por um carro. Grosseiramente, o motorista dirigiu-se a ele.
“Quer morrer, desgraçado? Da próxima vez, se joga logo, infeliz!”, e dedicou ao rapaz sinais ríspidos e mal educados.
Pedro ignorou o homem e seguiu a sua volta para casa. Palpitações crescentes o incomodavam. Sentia-as refletidas por todo o seu físico. A agonia era enlouquecedora. Não conseguia explicar suas reações diante do intraduzível. Nem toda a matemática de Pitágoras e Bhaskara poderia transformar em exatidão tudo o que o afligia. Ao chegar à sua casa, continuava sem compreender o turbilhão de sensações inadjetiváveis que o envolvia. Mais uma vez, sentou-se à mesa, diante do computador, e tocou os teclados. Tamborilou-os, em vão, por um longo tempo. Os minutos transcorriam velozmente. Em silêncio, fechou os olhos. Partes da alma e do corpo de Pedro, em sinal de total entrega e comunhão com a literatura, eram doce e bruscamente aprisionadas pelo furacão de emoções indescritíveis que é o coração do escritor.