509-A VOLTA DO GATO PRETO -

Conto 509-Desaparecimento de Zezinho –

Versão definitiva para volume 8 - "Senhora das Coroas"

O túmulo simples de dona Helena encerra um fato muito estranho ligado à sua morte. Muito do que fiquei sabendo foi pela prosa de Rafael, o coveiro. Na sua simplicidade, gostava de contar o que acontecia lá dentro — e olhe que coisas muito estranhas me narrava, algumas vezes até de fantasmas que, dizia, rondavam entre as campas.

Tínhamos sido colegas de escola primária e nossa amizade continuou depois que tiramos o diploma. A cidade era pequena e a gente se encontrava de vez em quando. Casou, teve uma filha e perdeu o marido. Depois de viúva, passou a viver com a filha.

Nossa amizade foi reavivada quando ela esteve internada no hospital onde eu trabalhei durante boa parte de minha vida. Anêmica e desidratada, ficou no hospital poucos dias e quando ela voltou para casa, visitei-a diversas vezes, pois era uma doçura de velhinha. Amava a vida, as pessoas, e, principalmente, seu gato Pretim. O nome já diz tudo: um gato preto como noite sem lua.

Imensa era sua afeição pelo gato, que o mantinha constantemente em seu colo, afagando-o enquanto o bichano dormia preguiçosamente, ronronando de prazer. Abatida pela idade e pela fraqueza, só deixava a cama nas tardes mais quentes, quando passava algumas horas sentada na velha cadeira de vime, conformada com o corpo caquético. Então, ficava olhando para o nada, afagando o Pretim aconchegado em seu colo.

Tamanha era seu apego ao gato que dizia constantemente: — Quando morrer, o Pretim vai comigo. Tem de ser enterrado comigo.

Nicanor, o genro, respondia com benevolência, querendo agradá-la: — Pode deixar, vovó Lena, a gente enterra o gato com a senhora.

Uma tarde, enquanto dona Helena cochilava na sala, e nós tomávamos chá na cozinha, Mariana, a filha, disse para Nicanor: — Que pedido mais esquisito. Imagina, enterrar o gato com a mamãe. Acho que ninguém vai cumprir o que ela quer. Não acho certo o Nicanor ficar enganando a mamãe.

Nicanor respondeu: — Vamos fingir que vai ser assim. Você sabe, sua mãe é teimosa como uma mula e já está caducando.

Mariana reagiu com um olhar furioso para o marido e disse: — Nico, olha o respeito...

A casa era cheia de vida: os três filhos de Nicanor e Mariana, estavam em idade escolar, eram irrequietos e agitados. Zequinha, o sobrinho “torto” de Mariana, era tranqüilo, pois era lerdo ou retardado. Não freqüentara a escola e ajudava a tia nas compras do dia-a-dia, na faxina da casa, e até na cozinha, lavando e guardando a louça após as refeições. Brincava com os primos, mas era calado e não entrava a na algazarra.

Quando visitava vovó Lena (era assim que todos a chamavam) eu observava a dedicação de Zequinha, ajudando-a a se levantar e a caminhar até a cadeira de vime. Ele também gostava do gato. Era sensível, dedicado, e, depois do gato, era a companhia preferida da velha.

Acho que foi o Zequinha quem sentiu, mais que todos, a morte da avó. No velório, chorou muito, parecia inconsolado. Rafael me contou que, depois do enterro, ficou por muito tempo sentado no chão ao lado da cova, soluçando baixinho. Foi preciso Nicanor puxá-lo pelo braço, levando-o com a família.

Uma semana depois do enterro, vi quando Rafael saiu agitado do cemitério, logo de manhã, e voltou um pouco depois, acompanhado de Nicanor. Os dois entraram apressados no cemitério. Fiquei intrigada. Fechei a porta da flora e fui pro cemitério, pensando o que poderia ter acontecido.

Caminhei, disfarçadamente, olhando para os lados, um pouco distante dos dois, mas não tão longe que não escutasse o que falavam. Rafael dizia para Nicanor: — Pra mim, fizeram macumba na cova de dona Helena.

— Deixa de besteira, respondeu Nicanor. Nossa família sempre foi religiosa, nunca acreditamos nestas coisas.

Caminhavam depressa e tive que apertar o passo também. Chegamos quase juntos ao local onde dona Helena havia sido enterrada. A laje brilhava ao sol da manhã, por havia recebido a pintura de cal naqueles dias. Sobre ela, um vaso quadrado com flores murchas.

No meio das flores e folhas, estava o corpo degolado de um gato preto. Uma estaca de madeira, penetrando no corpo do animal, mantinha o terrível bicho suspenso, a cara felina sobressaindo-se numa visão terrível por entre os ramos.

Nicanor ficou agitado quando viu aquela coisa esquisita que parecia mesmo ser um feitiço ou macumba, sei lá... Falou alto para Rafael: — Mais esta! É o Pretim, o gato da velha! Mas, que quer que eu faça?

Rafael estava sem jeito, parecia com medo. Disse para Nicanor: — O senhor é quem sabe. Aí é que ele não pode ficar. Mas a sepultura é de dona Helena...o gato também...O senhor é que decide.

Nicanor se enfezou e se afastou, gritando para o coveiro: — Não acredito em macumba nem em feitiço. É tudo bobagem. Tira esse gato daí, joga em qualquer lugar. Eu é que não quero essa coisa comigo.

Rafael me contou que foi com muito medo que pegou o gato e jogou atrás do cemitério, numa plantação de eucaliptos.

Mariana costumava visitar a sepultura da mãe quase todos os dias. No dia que o gato foi encontrado, ela não apareceu. Não sei se o marido a proibiu de ir lá e encontrasse o gato sobre a sepultura da mãe. E ficou alguns dias sem ir ao cemitério. Pelo menos, não a vi entrando lá. Já tinha passado uma duas semanas, quando a vi. Ela me cumprimentou ao entrar e, na saída, fui ao seu encontro. Estava muito triste e parecia nervosa.

Cruzando e descruzando as mãos, sem parar e enxugando as lágrimas que escorriam pelo rosto, me contou: — Lá em casa estão acontecendo umas coisas estranhas. Primeiro, foi a queda do candelabro de madeira, parafusado no teto da sala de visitas. Estava na sala fazendo a limpeza dos móveis, e por pouco não me acertou. Os objetos estão desaparecendo dos lugares onde ficam guardados para aparecer no quintal ou no jardim da frente de casa. Ouço barulhos estranhos à noite no forro e no telhado. Nicanor falou que estou sofrendo dos nervos. Mas o Zezinho também escuta. Contei isto tudo pra dona Nazaré, que vem lavar a roupa uma vez por semana, diz que isto é coisa do diacho e que tem a ver com a morte de mamãe. Mandei ela calar a boca, fiquei até com raiva dela.

Perguntei, assim como quem não quer nada: — E o Nicanor...? Ela me respondeu que o marido não acreditava em sobrenatural, achava que devia ser coisa do Zequinha. Me falou que desconfiava que foi o Zequinha quem tinha matado o gato e colocado ele sobre a tumba da mamãe. Isto tudo está me deixando nervosa, nem sei o que pensar.

As visitas de Mariana à sepultura da mãe voltaram a ser mais constantes, quase que diárias. Todas as vezes passava pela minha lojinha de flores, para um dedinho de prosa e comprar umas flores para colocar no vasinho sobre a laje da sepultura. . Me falava dos estalos, barulhos inexplicáveis de noite, pela casa toda, que estavam mexendo com seus nervos.

Um dia ela me contou que o Zequinha estava muito triste, sentindo demais a morte da avó e com medo das “assombrações” que falava que via. E então confessou que tinha sido ele quem matara o Pretim e colocado na tumba da avó.

Fiquei muito zangada com ele, Mariana disse. Que era pecado e que tinha de confessar e comungar. Zequinha não queria, mas tanto falei com ele, que foi. Confessou e comungou durante a missa de domingo. Quando a missa terminou, pedi ao Padre Lineu que fosse lá em casa dar uma benção.

Alguns dias depois, Mariana entrou pela minha loja, com os olhos fundos e numa voz desanimada, foi me contando. — As coisas estão piorando lá em casa. Na quinta feira passada: o fusca do Nicanor, estacionado na garagem, rodou, sem ninguém empurrar, e bateu contra a parede, dois metros à frente. Fez um buraco na parede e ficou bem amassado. Agora, estou com medo que alguma coisa ruim possa acontecer com as crianças com Nicanor ou comigo.

Perguntei-lhe pelo Zezinho. — Ah, ele ainda continua tristinho, me respondeu.

Sábado de manhã Nicanor passou apressado pela loja de flores, indagando se eu tinha visto o Zezinho. Respondi-lhe que não, e perguntei-lhe o que havia acontecido. — Ele sumiu de casa. Desde ontem de tarde que desapareceu. Não dormiu em casa e estamos apavorados, Não sabemos onde ele foi. Já procuramos pela vizinhança, ninguém dá notícia dele.

Domingo cedo, Mariana passou pela flora, abatida, os olhos fundos. Não escondia a dor pelo desaparecimento de Zezinho. — Já procuramos por toda a cidade, avisamos a polícia, mandamos por um aviso no jornal da semana, que sai hoje. Agora vou visitar mamãe e pedir que nos ajude.

Preparei dois pequenos buquês de flores, um para ela e outro para eu colocar no vaso que ficava sobre a laje e fui com ela até o túmulo de dona Helena.. Quando Mariana tirou as flores velhas e os ramos secos, ouvimos um som de coisas batendo dentro do vaso. Virou o vaso sobre a campa e dele saíram pequenos ossos, um pelo ressecado e a cabeça de um gato preto, os olhos vazados e os dentes arreganhados, numa careta de horror e mistério.

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Muitas coroas foram dedicadas à dona Helena, doce Vovó Lena. Tinha inúmeras amigas e, apesar da doença ou por isso mesmo, sua morte fora suave. Fiz uma coroa especial com rosas vermelhas, pois acho que eram apropriadas para ela.

A tarde do enterro estava triste, como se a Natureza estivesse sentindo a sua morte. Quem poderá explicar as estranhas ligações entre as pessoas, os animais e à Natureza? Na história de dona Helena, é um mistério que permanecerá para sempre.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 10/11/2014
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