Felipe Voou sobre Rodas

Felipe não andava, ele voava com sua bicicleta. Desde pequeno, quando ele aprendeu a andar de mãos dadas com seu pai no parquinho em frente de casa, ele queria tirar as rodinhas que o sustentavam. E desde a primeira pedalada era um tal de “tira a rodinha pai”, “tira”, que os berros se ouviam na esquina. Isto quando a pequena descida em frente a sua casa era seu mais ardil desafio.

Com o tempo a rodinha esquerda saiu da sua máquina. O pai, ainda um pouco contrariado, viu Felipe cair seu primeiro tombo e colocar sua primeira tala logo aos cinco anos. Foi na volta do parquinho, numa tarde onde Felipe insistiu em descer a pequena rampa de acesso à garagem de casa que dava no subsolo. Ele desceu, a primeira vez sem rodinhas, e não conseguir frear até encontrar o terrível e duro pilar, seu primeiro inimigo.

Aos treze anos de idade a tala de Felipe virou um belo gesso no seu braço direito. “Não Felipe, não vá de bicicleta até a casa de sua avó pela estrada, é muito perigoso”. Ele deixou seu pai sair para o trabalho, e quando subiu nos pedais, zarpou como se fosse o Ayrton Senna de duas rodas. Uma odisseia. Eram quarenta minutos de bicicleta, fazendo todos os S da avenida principal e descendo as íngremes paisagens no acostamento da pista. Um caminhão o assustou numa curva quando ele deixava o vento roçar na face, os braços abertos fora do guidão, o bafo quente das colinas arfando naquele começo de tarde de verão. Fóóóóóóm. O motorista sacana o tirou do sonho bom, ele era o melhor piloto de fórmula um, e passava por todos zunindo na mais importante das pistas. Felipe desequilibrou, saiu da estrada, as rodonas da bicicleta entraram na terra fofa para fora do acostamento e descerem o barranco de uma plantação de bananas. Sua vida se contava pelos gessos.

Felipe cresceu e a bicicleta era sua principal amiga. Ele descia os morros para cima e para baixo de sua cidadezinha no interior do Brasil entregando cartas, avisos e ordens de pagamento para a Prefeitura da cidade. Foi seu primeiro emprego. Quando a bicicleta avançava a cada quarteirão, ele tirava o tempo e as parciais no relógio de pulso. Competindo com ele mesmo, a cada semana sua performance melhorava no GP das ruas. No começo era uma hora e meia de entregas, e em três meses ele já fazia em cinquenta e cinco minutos. Assim ele se sentia melhor que os seres motorizados. “Felipe você está voando”, a gerente administrativa da Prefeitura dizia, muito antes de Felipe traçar voos mais altos sob duas rodas.

Com quinze, ele viu pela primeira vez uma grande competição de ciclismo na tevê, nas Olimpíadas. O vencedor, um francês que para Felipe não era tudo isso, podia ser batido com um pouco de treino, e a sorte que ele costumava ter. O francês fazia voltas e voltas alucinantes naquele circuito oval, e Felipe repetia os lances da competição em volta da quadra de futebol de seu bairro. Enquanto todos jogavam bola, Felipe batia seus recordes.

E passou a sonhar como iria chegar lá, lá longe, onde o pedal não alcançava. Aos dezessete ele comprou sua primeira máquina, uma bicicleta de competição. Óculos especiais, roupas aderentes, capacete. Felipe se sentiu o máximo quando usou o uniforme completo para ir à praia. Eram cem quilômetros. Só não o avisaram que a possante tinha alguns probleminhas. Os freios estavam gastos, assim como os pneus. Mas era o que dava para comprar com seu salário.

Na internet, ele achou um grupo de ciclistas de sua região, e com eles passou a pedalar por várias estradas e circuitos no Brasil. Felipe começou a competir, e em poucos anos, quando ele venceu a primeira etapa de ciclismo nacional decidiu que estava pronto para mais uma proeza. Em Interlagos, circuito do automobilismo, ele passou a ser imbatível. Lá ele venceu o campeonato nacional em três oportunidades. Ele ligava para seus pais chorando de alegria, e eles, nervosos, diziam para Felipe do orgulho que tinham em vê-lo vencer, como no parquinho com suas rodinhas.

A brincadeira infantil virou profissão. Reconhecido como o melhor ciclista do Brasil, Felipe viajava à Europa e por lá competia. Seus primeiros resultados não foram muito bons. Na França ele ficou em trigésimo lugar numa competição de trinta e dois. Ao vencer apenas um colombiano e um português, Felipe ligava para casa e gritava de raiva. Ele precisava de mais e mais treinamentos, equipe de preparação, suplementos alimentares e mais atenção da federação brasileira. Seu pai incentivou-o com algum dinheiro. E ele queria mais.

Dois anos de bons resultados nas competições europeias, e um surpreendente primeiro lugar numa das etapas da Espanha, o levaram até a competição mais sonhada desde as longas descidas até a casa de sua avó. Com vinte e cinco anos, Felipe estava inscrito na prova de ciclismo de estrada nas Olimpíadas de Londres representando o Brasil. Ele já estava entre os vinte primeiros do ranking mundial, um feito nunca antes alcançado por um sul americano. Seu pai o ligou desejando a melhor das sortes, sua avó rezou na Igreja, sua ex-chefe, a gerente da Prefeitura, organizou uma torcida especial no escritório inflamando ainda mais a cidadezinha, que agora já tinha Felipe como seu filho mais importante, até nos outdoors e nas faixas espalhadas pela cidade.

Nos primeiros cinquenta quilômetros Felipe ficou no segundo pelotão, disputando cada curva com mais de trinta competidores e vendo ao longe os dois primeiros. Seu uniforme verde e amarelo chamava a atenção do público e dos ciclistas que o viam passar. Era um verde tão chamativo que Felipe dizia que era para a torcida no Brasil identificá-lo pela tevê.

Quando a prova chegou nos dez quilômetros finais, Felipe virou o pé nos pedais, passou um por um do seu pelotão, e mirou seus dois últimos concorrentes logo em frente. Sua avó gritou, seu pai quase desmaiou, e seus ex-colegas de escritório encheram os olhos de lágrimas. Eram os últimos três quilômetros para entrar na história.

No primeiro lugar da final Olímpica estava seu segundo maior inimigo, o alemão engomado que tinha os pés mais rápidos do planeta. O alemão era o mais poderoso adversário, quatro vezes campeão mundial, duas vezes da Volta da França. Felipe não era nada perto de tantas premiações e de tantas medalhas que cobriam o alemão dos pés à cabeça, e ainda faltava espaço.

Mas Felipe passou o segundo colocado pedalando como nunca, seu suor escorria no peito e seus pulmões pulavam na boca. O holandês ficou surpreendido ao vê-lo grudado a poucos milímetros de seus pedais, quando a bicicleta de Felipe parecia que berrava de dor ao ser tão açoitada pelos giros abruptos que quase a desparafusava no ar. Sem fôlego, muito perto de perder a consciência de tanto pedalar, ele estava ali, a dois metros do alemão. Sua força saiu de não se sabe onde. Ao ver ao fundo a linha de chegada, as bandeiras e os gritos embaçaram a nitidez de sua visão. Em poucos segundos ele roçava sua roda dianteira no pneu de trás de Rudolf, que olhou para trás e levando um pouco de susto, viu um amarelo canário incompreensível na sua esteira.

Mandíbulas apertadas no queixo, músculos das pernas já retesados de tanto esforço, e Rudolf viu Felipe abrir ao seu lado direito faltando menos de cem metros para a linha final. Num esforço quase sobre-humano Felipe pouco entendia o que acontecia naquele momento, seus pés estavam flutuando e sua bicicleta cortava o vento como sempre fazia desde a infância, dessa vez, espremido entre a barreira do público e do temível alemão. Faltavam agora poucos metros para eles passarem na linha de chegada , Felipe estava com os pedais lado a lado com o alemão quando ele viu na sua frente um enorme obstáculo.

Entre as grades, um desajustado espectador enfiou um sarrafo de madeira faltando menos de cinco metros para Felipe passar. Era como se fosse um grande taco de baseball, enfiado entre as grades de ferro bem do lado de Felipe. Não tinha como se safar. Num milésimo de reflexo, Felipe tentou jogar sua bicicleta para o lado do alemão, que num lance de esperteza, já tinha freado antecipadamente e se colocado na extrema esquerda prevendo a catástrofe. Os helicópteros que giravam suas rodas no céu, filmavam a cena para o mundo todo, quando Felipe alvejado na roda dianteira pela madeira, voou sobre sua bicicleta.

Foi o voo mais importante de Felipe. Ele riscou no ar a mais de sessenta quilômetros por hora e cruzou a linha de chegada primeiro do que o alemão, mas sem a bicicleta. O homem que derrubou Felipe com a madeira já estava dominado pelos policias que o levariam para a cadeia. Ele trazia cartazes e camisetas de protesto pedindo por um mundo menos poluído, que usasse menos o carro e mais a bicicleta. Felipe se arrastou por metros a fora, e só parou em frente ao pódio armado para cerimônia de consagração da medalha. Sua bicicleta se desmanchou numa das cercas entre os berros dos que viram tudo aquilo. Felipe não levantou, estava inconsciente. Foi levado ao hospital na pressa, e a imprensa internacional depois do susto noticiava que estava tudo bem, apenas um braço quebrado e um ombro deslocado.

A prova não foi cancelada, Rudolf, o alemão ficou com a medalha de ouro e falou para os microfones que dedicava mais esta vitória a sua família, e claro, ao seu grande oponente, o Felipe. No Brasil, a imprensa passou a questionar o resultado do alemão, apesar de que se alardeou boatos de que um brasileiro medalhista olímpico no ciclismo só podia ser um caso de doping. Felipe acordou um dia depois com muitas flores e mensagens, mas não lembrava de nada. Achou que o caminhão mais uma vez tinha buzinado, e pediu para treinar para a prova olímpica, que para ele não tinha acontecido. O voo de Felipe virou manchete dos jornais, que descobriram que o seu agressor, um homem nos seus trinta anos, foi um menino que queria ser ciclista. Atrás das grades, ele se desculpou ao derrubar o provável campeão olímpico, e mandou um recado para o Brasil: “Felipe é o meu campeão, não foi de propósito não, perdoem-me. Ele voou, e foi mais alto que qualquer outro brasileiro desde Santos Dumont, sorry”.