Cavalo Azul

Sempre quando eu bebo, eu faço bobagem. Nesse dia, eu não só bebi um pouco demais, mas eu topei com algumas pessoas que não deveria ter visto novamente.

Tentei convencer a mim mesmo, depois de mais de meia dúzia de garrafas de cerveja e outras tantas de doses de scotch, que o caminho natural para o ser humano era a casa. Isso foi até eu passar em frente ao Cavalo Azul, aliás, um excelente nome para um bar cheio de malucos, como o que vos fala. Eu pensei, vou tomar só a saideira.

Merda, naquele dia sabia que havia errado de novo. Poderia ter deixado a minha consciência tomar conta do momento, fazer com que o aviso ensurdecedor das mulheres que sempre tentaram guiar minha vida – o que sempre vinha em forma de sórdidos pensamentos por detrás das orelhas – me agarrassem naquela porta. A professora da primeira série, a minha mãe, a minha ex-mulher. Eram tantas que me seguraram. Eram vários os rostos que assumiam a forma delicada de uma velhinha rabugenta e cheia de recalques. Poderia vir à tona novamente na porta daquele curral, com um belo esporro daqueles que eu ouvia antes de encerrar uma noitada, “seu bêbado, já para casa, antes de acabar de destruir sua vida”. Eu morava a apenas quatro ou cinco quadras do Cavalo com a cor que eu mais gostava, e ele me seduzia com suas luzes piscantes e sua música tosca e fedorenta saindo dos dedos etílicos nas moedas depositadas na máquina de música, ao lado da maquininha de caça níquel. Aquela pocilga, que reunia apostadores, caloteiros e loroteiros de toda espécie, me atraiu novamente contra o cansaço e os sóbrios pensamentos, e me fez dar meia volta e entrar. Só era uma dose. Mudou minha vida.

Ao entrar no local, eu levantei o dedo para a senhora magra de rosto gorduroso, Dona Neiva, a dona do bar. Ela que estava há quinze anos ouvindo frequentes insultos, mediando apostas, fritando pastéis e coxinhas, apartando brigas de senhores das melhores e piores estirpes, e tirando facas das mãos daqueles que brigavam por ninharia, do resultado do jogo do campeonato às piadas sobre a potência sexual de cada um dos envolvidos. Enfim, era um lugar de família, e das piores.

Encostado no fundo do balcão e com o copo de whisky em punho, eu ouvia as novas peripécias do Dionísio. Certamente, o frequentador do Cavalo Azul mais irritante. Ele se achava muito sagaz e viajado, e era viciado em contar vantagens. E naquela hora, ele estava irresistível. Na semana passada, ele já havia contado sua louca viagem transcendental para a Índia quando jovem, onde ele tivera orgasmos múltiplos na posição de lótus com belas estudantes de meditação em templos na margem do Rio Ganges; e, claro, das suas rápidas passagens por Paris, onde ele fumou ópio com Brigitte Bardot há décadas atrás, nos fundos de um café árabe no Quartier Latin.

Nessa noite, ele estava mais modesto, mas continuava intragável. Ele estivera em viagem ao centro do país na semana anterior, assim dizia. E como foi fenomenal! Ele trabalhava vendendo ventiladores de teto. A fábrica que ele representava estava negociando um grande lote de produtos para uma rede de lojas de eletrodomésticos. Ele foi atendido justamente por uma jovem empresária, a esposa do dono da rede. Loirinha, estatura baixa, pernas grossas e bumbum arrebitado. O safado contava sua história com detalhes e requintes de crueldade. Com o dono da rede em viagem, e por cortesia, a jovem esposa ofereceu a ele um almoço na mansão, com direito a piscina e salão de festas. Com o calor que batia em meio à vegetação tropical, a jovem e sua assistente, uma morena clara de bumbum polpudo e curvas estonteantes, inventaram de tomar um banho de piscina. E bem à vontade.

“E elas estavam saidinhas. Perguntaram se eu não queria tirar a camisa, e disseram que naquela casa era costume entrar na piscina só com a parte de baixo do biquíni. Eu fiquei babando por cada mamilo pequeninho, dois branquinhos e dois moreninhos, que apontavam para mim que só olhava de longe e pensava em tirar a parte de baixo do calção e correr para o abraço. Não precisou, a dona da casa avançou em mim e me disse no ouvido, não precisa ficar tímido, ninguém vai ficar sabendo... Que tá rindo, Alfredo? Tá achando que é mentira?”.

O contador de histórias olhou para mim com aquela cara de brabo. Na semana passada, eu já havia entregado para toda a rapaziada do bar que ele havia fugido de um taxista pela entrada do nosso prédio. Correu de medo, e assustou a todos com seus gritos desesperados por ajuda. O motorista, conhecido na região e nos bares da vida, cobrava uma dívida de mais um mês de corridas não pagas. A síndica do prédio, a maior fofoqueira da face da Terra, me contou que quando o taxista ia cobrá-lo, ele apagava as luzes do apartamento e ficava bem quietinho em casa. Depois disso, mandava dizer por alguém que estava viajando.

“Não. Que é isto! Você mentindo? Eu tenho inveja de você. Aqui um frio danado, nós aqui tentando tomar uma coisinha para esquentar, e ainda olhando para estas mulheres castas e cheias de roupas saindo da igreja daqui da frente. Pena que nesta tal de suruba na piscina você não tenha pego nenhuma corzinha, tá mais branco que a gente. E jurava que tinha visto você no Bar do Jerônimo na quinta-feira passada, até me cumprimentou e disse que havia arrumado uma bela grana apostada na seleção brasileira, que perdeu pra Bolívia naquele dia nas Eliminatórias da Copa. Acho que tinha bebido demais naquele dia. Tô vendo coisa”.

O Dionísio me fez outra cara feia. Ao tentar retomar a conversa, gaguejou e derrubou um copo de cerveja em cima do balcão, virando parte do líquido nos pés do pequeno séquito de otários que acreditavam nos seus contos da carochinha. E eles ainda pediam mais detalhes das devassas da piscina. Dei um largo sorriso no momento que ele juntava o copo com as mãos. Percebi que ele falou baixinho pra mim com aquela boca mole e desagradável, “filho da puta”.

Peguei meu copo e rumei para os fundos do bar, passando pelo Dionísio. De propósito, fixei o olhar nele, ameaçadoramente. Ele apenas sorriu ironicamente. Uma hora eu ia acertar as contas. No meio da pasmaceira de charuto e cigarro dos fundos do Cavalo, visualizei Cidinha. Ela estava lá, metendo cédulas no caça-níqueis, como sempre. Eu fui conversar com ela. Quem disse que bar é coisa de homem. Cidinha era uma mulher que ninguém suspeitava, uma das poucas frequentadores do Cavalo Azul. Era baixinha, corpulenta, usava cabelos bem curtinhos rente à testa, sempre usava calças largas e camisa de flanela. Ela parecia um jovem rebelde nos nossos tempos do punk rock, quando bebíamos cachaça com coca cola na frente do Centro Comercial da cidade, lá no início dos anos 80. Eu a conhecia há anos, desde a nossa adolescência.

Cidinha era muito famosa no Cavalo Azul, melhor dizendo, em toda a cidade. Ela sabia de cor todos os jogos e a tabela de pontuação do campeonato brasileiro, fazia um churrasco como ninguém nas noites de pôquer de quinta-feira, e bebia cerveja a litros. Ninguém mexia com Cidinha, senão ela ameaçava meter a porrada. Ninguém duvidava. Gostava de falar sobre mulher, assunto que ela mostrava conhecimento canônico, ao zombar das instabilidades emocionais, das inseguranças e das madames cheias de mania. Quando os bêbados do bar queriam a aporrinhar, eles sabiam a senha. Eles a zangavam com reflexões acerca da falta de um pênis, do mau humor de Cidinha causado pelo ciclo menstrual, e de suas desconhecidas namoradas. Isso sempre causava problema, era o tipo de coisa que acabava com a paz do ambiente. Ela se defendia dizendo que tinha excesso de testosterona, “sou mais macho que muitos de vocês aí, podem vir na mão”. E assim ela zombava dos seus adversários, e driblava seus piadistas e detratores. Normalmente, eles não retrucavam. Cidinha trabalhava na Polícia Civil, quem cismava com ela sempre se dava mal de alguma forma, assim se acreditava. Se tinham suspeitas de que por debaixo da sua camada adiposa na altura do abdômen, e nas curvas das camisas sempre com muito tecido de sobra, haveria sempre a postos um trinta e oito de cano curto. Eu, pessoalmente, nunca o percebi.

“Chega pro lado Cidão. Que bom te ver aqui, faz tempinho hein”.

“Caralho, Alfredo. Eu tava te vendo daqui guri. Qual é? Já tá de zum zum zum com o Dionísio. Qual é a mentira hoje, ele já comeu quantas?”

“Ele continua naquelas viagens dele. Agora ele veio lá do Rio de Janeiro. É xana pra todo lado, praia, sol e feriado todo dia. Ele é o cara”.

“Este otário tem que aprender a mentir, todo mundo sabe aqui que ele tá quebrado, e que tá sempre na corda da... Aliás, como é que ficou aquele negócio com a tua ex-mulher?”.

“Nem me fala, ainda estamos disputando o apartamento e a minha pensão no juiz”.

Acho que esqueci de contar para vocês. Separei-me da minha mulher há três anos, e desde essa época, estávamos disputando na Justiça o apartamento e a minha surrada pensão. Sou aposentado do Banco Econômico. Trabalhei nele por dezesseis anos, quatro meses e cinco dias. Saí de lá por invalidez. Descobriram que eu estava bebendo demais e juraram que eu tinha problemas psíquicos. Sou bipolar. Vou dizer que eu sempre desconfiei que eu não era muito certo, tinha alguns altos e baixos depressivos, e desde muito jovem desenvolvi uma rejeição enorme a uma coisa chamada chefe e cliente; que você pode substituir também, se quiser, por mulher e filhos. Bom, tá certo que eu forcei um pouco na perícia médica, tomei alguns medicamentos por conta que me fizeram mal, e ainda descobriram uma úlcera gástrica bem desenvolvida e um problema no fígado. Enfim, parece que estou semi enterrado.

A minha mulher disse que não me aguentava, separou de mim porque antes de tudo me amava, vai entender? Fiquei com ela por dezessete anos e exatamente uma semana. Na segunda semana de casado eu já sabia que não ia dar certo. Era um tal de levanta desta cama, olha a roupa atirada no chão, cadê o dinheiro para o rancho do mês, já planejou as férias com nossos dois filhos, que eu desenvolvia uma espécie de rejeição afetiva. O pior horário do dia era voltar para casa. Entre a saída do banco e a chegada em casa eu era muito respeitado por minha gentileza, simpatia e boa conversa com todos os que estavam distantes da minha vida familiar. Era um gerente de respeito, um homem cheio de histórias e um grande conselheiro. Em casa eu era um fracassado, rejeitado e depressivo. Um personagem de mim mesmo que eu sabia muito bem explorar quando queria.

Numa noite, eu cheguei em casa com um buquê de flores, o primeiro que eu daria a ela desde o fatídico dia na frente do padre no altar na igreja. Era nosso aniversário de casamento. Ela recebeu (ela sempre quis receber flores e eu nunca a dava), começou a chorar, e disse que achava que era tarde demais, e que tinha certeza que eu deveria ter outra. Não entendi muito bem aquilo tudo. Digamos que, achava que tinha sido eu o diagnosticado há alguns meses com alguma deficiência de personalidade, os médicos me enganaram. Fui dormir um pouco alcoolizado e me sentindo bastante estranho. Claro que depois de ter passado no Cavalo Azul para pensar um pouco, e beber várias.

Aceitei a versão da traição e comecei a simular nos dias que se seguiram que eu tinha outra mulher. Na semana posterior do fatídico buquê de flores, eu acordei numa segunda-feira, e ela já tinha arrumado minhas coisas para eu ir embora. Ela chorou, disse que me amava e que era pro nosso bem, e um mês depois recebi a notificação da Justiça. Ela queria cinquenta por cento do apartamento e da pensão para cuidar das nossas crianças: um rapaz de vinte anos e uma menina de dezessete. Uns bebês para ela, dois adultos para mim. Ela era a mulher traída, e eu, um imbecil completo, sozinho, um bêbado com toda a liberdade agora para as mulheres. Se ela soubesse que a única mulher que eu batia papo na vida era a Cidinha... Aliás, a mulher que eu mais me aproximei em toda minha vida.

“Ainda não saiu o veredito final do juiz. Tô prorrogando o máximo que eu posso com meu advogado porque vou provar que, quando ela veio morar comigo, eu já tinha o apartamento, você sabe. E pensão para ela eu não vou dar, ela que trabalhe. Nossos filhos estão bem grandes e a mais nova já está até namorando. Ela anda pedindo dinheiro para tudo. Faculdade dos filhos, roupa pros filhos e iphone novo pros filhos”, expliquei a Cidinha, que me considerou coerente.

“Mas ela não havia começado a trabalhar na fábrica deste filha da puta?”, e apontou em direção ao balcão da entrada do bar.

“Tô começando a desconfiar que este vagabundo tá zoando com meu dinheiro”, respondi abruptamente.

Aqui, meu querido leitor, você começa a entender a outra parte da história. Isabela, minha ex-esposa ficou no meu apartamento com meus filhos. Eu acabei me mudando para o prédio ao lado do mesmo conjunto, por pressão deles que não queriam ficar longe do pai doente. Dionísio, que sempre foi um bosta, começou a namorar minha ex-mulher. Ele era nosso vizinho há muitos anos. Isabela numa viagem com nossos filhos à Ilha do Mel, três meses depois da separação, que eu paguei com o argumento de que os meninos precisavam arejar a cabeça do trauma da separação dos pais, se apaixonou pela figura. “Ele é muito atencioso, carinhoso e nunca me negou ajuda no cuidado da casa e no zelo da educação dos meninos”, isso era o que eu ouvia da mãe dos meus filhos. Em poucos meses, ela começou a trabalhar com Dionísio na “empresa de representação dos melhores ventiladores do Brasil”, era assim que eles diziam. Mas para todos os efeitos, ela não parou de me pedir mais e mais dinheiro, “já que as vendas estão ruim por aqui, este verão não prestou, fez mais frio que calor, quem vai querer comprar algo pra se refrescar?”, ela me tentou esclarecer ontem no telefone depois de pedir mais um depósito online entre contas correntes.

Enquanto isto, eu encontro este verme no bar, vomitando suas ladainhas e aventuras sexuais para os puxa-sacos de plantão, enquanto eu, que deveria mandar pro inferno minha ex-mulher, continuo pagando a conta desse vagabundo.

“Estou jogando dinheiro pelo ventilador Cidinha. Não sei o que faço”.

“Conta pra ela que você encontra o Dionísio no bar, e que ele anda se gabando das festinhas e comendo tudo que é piranha por aí. A gente sabe que muito disso é invenção do safado. Mas vai que cola?”, ela me deu um sorriso amarelo, sabendo que isto no fundo não era uma boa ideia.

“Ih, Cida, já falei o que tinha que falar. Eu sou o mentiroso, o que quer estragar seu relacionamento com este homem bom que é o Dionísio, que não seria capaz disto. Ele que é tão sério no trabalho. Ele que nunca mentiria para ela. E ainda mais, eu que estou com ciúmes, pode?”, expliquei para ela, depois arrematei o último gole do uísque.

Quando acabei de contar pra Cidinha o quanto estava insatisfeito com tudo que estava passando, rompeu pela porta do bar uma mulher loira, com cabelos lisos sedosos, e nariz pontiagudo, por volta de seus quarenta e cinco anos, nem gorda nem magra, e com pernas demasiadamente finas. Só reconheci que era minha ex-mulher pela sua voz estridente, endereçada não para mim, como de costume, mas para Dionísio.

“Tu é um mentiroso, mentiroso!”. Ela girou sua pesada bolsa para cima e a jogou com força na tentativa de acertar Dionísio que estava de costas para a porta. Num lance de sorte, ele curvou a cabeça para o lado e conseguiu desviar de uma bela bolsada que ia levar.

“Eu vi que você fez comigo, eu abri a conta do teu cartão de crédito. Suspeitei quando começou a vir nos extratos sempre um tal de restaurante A Carne é Fraca. Agora são motéis, perfume feminino e cestas de presentes. E eu em casa, a trouxa”, e passou a gritar ainda mais alto. Os bêbados puxa-sacos correram para o fundo do bar, uns ficaram de pé, outros sentados com os ouvidos aguçados na baixaria. A gritaria era tanta que muitos pedestres na rua diminuíam seus passos para ouvir o show da minha ex-mulher Isabela, e nisto ela sempre foi boa, sua voz era de gralha esganiçada. A cada vez que Dionísio balbuciava ela soltava o verbo.

“Descobri que você deu em cima da secretária da fábrica de ventilador. E ainda, cafajeste, na melhor amiga da minha filha, uma menina. Tu acha que eu vou te perdoar?”. E a galera da pinga começou a cair na gargalhada, Dona Neiva pediu para eles resolverem em casa que o bar não era lugar de briga, ainda mais de casal, e Cidinha vibrou com a cara de derrota do vagabundo.

“Você não vai falar nada... Fala... Aqui na frente dos teus amigos”, ela diminuiu a voz, e com um leve suspiro o desafiou a declarar-se inocente, ali no meio do bar.

“Falo!”, fez-se um absoluto silêncio no recinto. “Estou indo para boates de mulheres, sim. É verdade. Mas quem é culpado é aquele ali”, e girou o dedo em riste para o fundo do bar, até o apontar em minha direção. Isabela olhou para os fundos do bar, e tomou um susto ao me perceber entre a ouriçada plateia. Ela voltou a olhar para Dionísio interrogativamente. Ele completou: “Ele me ensinou e me levou à gandaia. Ele me disse que eu era muito certinho, e que você não gostava de homem assim, que eu ia perdê-la. Primeiro eu tinha que conhecer a vida, ser mais sedutor, mais ousado, e acabei cedendo. Não queria”, parecia um menino da quinta série quando entrava em confusão no recreio. Indefeso e débil, com cara fingida de remorso, com aquele jeitão de idiota.

Eu levantei-me, livrei-me dos braços da Cidinha que tentou me segurar, me postei entre os dois e disse: “Eu era só um bêbado fracassado, depressivo e bipolar. Agora sou um instrutor de puteiro para vagabundo mentiroso, um emissário do capeta a serviço da destruição da vida da bela donzela que vive às minhas custas há cerca de dezoito anos. Quero sair de vocês, mas vocês não deixam eu sair de mim. Estou quieto, vivo com meu salariozinho da pensão que querem dividir, não peço ajuda pra ninguém e não quero ser envolvido em nada. Mas vocês não me esquecem”, fiz uma pausa, tomei um ar, e sob o olhar de todos continuei.

“Eu só quero paz e não quero me envolver na palhaçada que vocês estão fazendo. Parem de me incomodar e vão pra puta que pariu, porque eu estou de saco cheio disto tudo. A Isabela sempre foi uma histérica e frígida. O Dionísio pelo que me contam pede dinheiro pra sua mãe de oitenta anos para cobrir suas despesas. Meus filhos insistem comigo que ele tá pedindo dinheiro também pra imbecil da minha ex-mulher. E ela dá! A partir de hoje eu não volto pra casa, vou mudar de bairro, de cidade, de país, de galáxia. Este bar chamado Cavalo Azul é um lugar de louco, bêbado, vagabundo, tarado e ladrão. Cidinha é a única pessoa deste ambiente que se preza, vocês riem dela, tem preconceito, não a aceitam, mas a vida de vocês é muito mais podre e mesquinha do que a dela. Vocês são doentes e retardados. Sabe de uma coisa, vão tudo tomar bem no MEI-O DO O-LHO do CU de vocês”, finalizei.

A última frase que balbuciei foi esta, quando uma saraivada de mãos, braços, tacos de sinuca, e garrafas voou em minha direção. Cidinha, um dia depois, quando eu acordei numa cama de hospital, me contou em detalhes a forma que eu apanhei dos bêbados do balcão, do Dionísio, da Isabela e da Dona Neiva. Ela disse que tentou evitar sem muito sucesso. Foi uma bela tunda que levei, um linchamento coletivo. Por sorte, ainda estou vivo.

Depois das minhas últimas palavras na linda homenagem aos meus amigos daquele curral de loucos, eu não lembrava de mais nada. Acho que eu aprendi a lição. Agora estou aqui, recordando esses encantadores momentos de reação nervosa, uma forte descarga emocional que me libertou dos fantasmas do passado. Escrevo daqui, da cidade maravilhosa, com um copo de uísque na mão, olhando o pôr do sol na beira da praia mansa, mais de trinta graus, férias eternas. Eu mudei, e para melhor. Perdi o apartamento, comecei a pagar metade da pensão, meus filhos estão na faculdade e Isabela perdoou Dionísio, entendendo que foi só uma escorregada. Podia dizer para vocês que a considero uma pobre coitada, mas hoje eu não tenho mais pena de ninguém. Hoje ela sabe que eu nunca tive nada a ver com as mentiras dele. Ela me mandou felicitações de Natal num bonito cartão por sedex, que eu provavelmente paguei, como sempre. A perícia do Inss continua dizendo que sou depressivo e bipolar, mas sabe que eu não acho má ideia. Mas uma coisa eu tenho certeza e prometo para vocês, nunca mais ponho os meus pés no Cavalo Azul.