504-O MISTÉRIO DO GATO PRETO - Fantástico

versão adaptada para "Senhora das Coroas" -

O túmulo simples de Vovô Garda encerra um fato muito estranho ligado à sua morte. Fiquei sabendo tudo porque Rafael, o coveiro, na sua simplicidade, gostava de contar o que acontecia lá dentro — e olhe que coisas muito estranhas ele me narrava, algumas vezes até de fantasmas que ele, dizia, rondavam entre as campas.

Conheci dona Hermengarda ainda quando ela esteve internada no hospital onde eu trabalhei durante boa parte de minha vida. Anêmica e desidratada, ficou no hospital poucos dias, mas o suficiente para conhecê-la um pouco. Gostei dela, e quando ela voltou para casa, visitei-a diversas vezes, pois era uma doçura de velhinha. Amava a vida, as pessoas, e, principalmente, seu gato Pretim. O nome já diz tudo: um gato preto como noite sem lua.

Tamanha era sua afeição pelo gato, que o mantinha constantemente em seu colo, afagando-o enquanto o bichano dormia preguiçosamente, ronronando de prazer. Já bem velhinha, muito doente, ela só deixava a cama nas tardes mais quentes, quando passava algumas horas sentada na velha cadeira de vime, conformada com o corpo caquético. Então, ficava horas e horas olhando para o nada, afagando o Pretim aconchegado em seu colo.

Tamanha era seu apego com o gato que dizia constantemente: — Quando morrer, o Pretim vai comigo. Tem de ser enterrado comigo.

Nicanor, o genro, respondia com benevolência, querendo agradá-la: — Pode deixar, vovó, a gente enterra o gato com a senhora.

Uma tarde, enquanto Vovó Garda cochilava na sala, e nós tomávamos chá na cozinha, Mariana, a filha, disse para Nicanor: — Quero ver quem vai cumprir essa promessa. Não acho certo ficar enganando a mamãe.

Nicanor respondeu: — Vamos fingir que vai ser assim. Você sabe, sua mãe é teimosa como uma mula e já está caducando.

Mariana reagiu com um olhar furioso para o marido e disse: — Nico, olha o respeito...

A casa era cheia de vida, pois os três filhos de Nicanor e Mariana, todos em idade escolar, eram irrequietos, agitados. Havia também o Zequinha, um sobrinho distante de Mariana, meio lerdo, ou retardado, como se dizia então. Não freqüentara a escola e ajudava a tia nas compras do dia-a-dia, na faxina da casa, e até na cozinha, lavando e guardando a louça após as refeições. Vivia brincando com os primos, fazendo algazarra.

Eu ficava observando, quando visitava Vovó Garda, a dedicação de Zequinha para com ela, ajudando-a a se levantar e a caminhar até a cadeira de vime. Também gostava do gato. Era sensível, dedicado, e, depois do gato, era a companhia preferida da velha.

Acho que foi quem sentiu, mais do que todos os outros, a morte da avó. No velório, chorou muito, parecia inconsolado. Rafael me contou que, depois do enterro, ficou por muito tempo sentado no chão ao lado da cova, soluçando baixinho. Foi preciso Nicanor puxá-lo pelo braço, levando-o com a família.

Uma semana depois do enterro, vi quando Daniel saiu agitado do cemitério, logo de manhã, e voltou um pouco depois, acompanhado de Nicanor. Os dois entraram apressados no cemitério. Fiquei intrigada. Fechei a porta da flora e fui pro cemitério, pensando o que poderia ter acontecido.

Fiquei um pouco distante dos dois, mas não tão longe que não escutasse o que falavam. Rafael dizia para Nicanor: — Pra mim, fizeram macumba na cova de dona Hemengarda.

— Deixa de besteira, respondeu Nicanor. Nossa família sempre foi religiosa, nunca acreditamos nestas besteiras.

Caminhavam depressa e tive que apertar o passo também. Chegamos quase juntos ao local onde dona Garda havia sido enterrada. O terreno estava ainda com terra fresca, amontoada. Ao lado, estavam tijolos e areia, para ser feita a laje.

. Sobre o monte de terra recém-amontoada, onde há poucos dias fora enterrada a dona Hemengarda, estáva o corpo degolado de um gato preto. Uma estaca de madeira, penetrando no corpo de animal, prendia-o ao solo macio.

Nicanor ficou agitado quando viu aquela coisa esquisita que parecia mesmo ser um feitiço ou macumba, sei lá... Falou alto para Rafael: — Mais esta! É o Pretim, o gato da velha! Mas, que quer que eu faça?

Rafael estava sem jeito, parecia com medo. Disse para Nicanor: — O senhor é quem sabe. Aí é que ele não pode ficar. Mas a tumba é de dona Hermengarda...o gato também...O senhor é que decide.

Nicanor se enfezou. Gritou para o coveiro, que tinha se afastado. — Não acredito em macumba nem em feitiço. É tudo besteira. Tira este gato daí, joga em qualquer lugar. Eu é que não quero essa coisa comigo.

Rafael me contou que foi com muito medo que pegou o gato e jogou atrás do cemitério, numa plantação de eucaliptos.

Mariana costumava visitar a sepultura da mãe quase todos os dias. No dia que o gato foi encontrado, ela não apareceu. E ficou alguns dias se ir ao cemitério. Pelo menos, não a vi entrando lá. Já tinha passado uma duas semanas, quando a vi. Ela me cumprimentou ao entrar e, na saída, fui ao seu encontro. Estava muito triste e parecia nervosa. Me confessou, enxugando as lágrimas que escorriam pelo rosto:

— Lá em casa estão acontecendo umas coisas estranhas. Primeiro, foi a queda do candelabro de madeira, parafusado no teto da sala de visitas. Estava na sala fazendo a limpeza dos móveis, e por pouco não me acertou. Os objetos desaparecem dos lugares onde a gente costuma colocar, para aparecer no quintal ou no jardim da frente de casa. Outro dia, o fusca do Nicanor, estacionado na garagem, rodou, sem ninguém empurrar, e bateu contra a parede, dois metros à frente. Dona Nazaré, que vem lavar a roupa uma vez por semana, diz que isto é coisa do diacho e que tem a ver com a morte de mamãe. Mandei ela calar a boca, fiquei até com raiva dela.

Perguntei, assim como quem não quer nada: — E o Nicanor...?

Ela me respondeu que o marido não acreditava em sobrenatural, achava que devia ser coisa do Zequinha. Me falou que desconfiva que foi o Zequinha quem tinha matado o gato e colocado ele sobre a tumba da mamãe. Isto tudo está me deixando nervosa, nem sei o que pensar.

As visitas de Mariana à tumba da mãe voltaram a ser mais constantes, quase que diárias. Todas as vezes que saía do cemitério, passava pela minha lojinha de flores, para um dedinho de prosa. Me falava dos estalos, barulhos inexplicáveis de noite, pela casa toda, que estavam mexendo com seus nervos.

Um dia ela me contou que o Zequinha estava muito triste, sentindo demais a morte da avó e com medo das “assombrações” que falava que via. E então confessou que tinha sido ele quem matara o Pretim e colocado na tumba da avó.

Fiquei muito zangada com ele, Mariana disse. Que erra pecado e que tinha de confessar e comungar. Zequinha não queria, mas tanto falei com ele, que foi. Confessou e comungou durante a missa de domingo. Quando a missa terminou, pedi ao Padre Lineu que fosse lá em casa dar uma benção. O padre foi depois do almoço e benzeu a casa, fazendo orações e jogando água-benta por toda a casa. Naquele domingo, bem de tardezinha, Zequinha saiu sem dizer aonde ia. Voltou quando já era de noite. Estava bem animado. Perguntei o que tinha acontecido, pois fazia tempo que não via ele assim. Ele me respondeu: “Agora sei que vovó Garda está feliz”. Fiquei desconfiada. “Que é que você andou fazendo”, perguntei. E ele me respondeu, com simplicidade: “— Ela queria o Pretim com ela. Ele tava jogado debaixo de uns eucaliptos, no fundo do cemitério. Fui lá, peguei os ossos e o couro, e enterrei tudo na cova da vovó Garda.”

...

Muitas coroas foram dedicadas à doce Vovó Garda. Estava com quase cem anos, e sua morte foi muito suave. Fiz uma especial para ela, com rosas vermelhas, pois acho que estavam apropriadas para ela.

A tarde de seu enterro estava triste, como se a Natureza estivesse sentindo a sua morte. Quem poderá explicar as estranhas ligações entre as pessoas, os animais e à Natureza? Na história de dona Hemengarda, é um mistério que permanecerá para sempre.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 08/11/2014
Reeditado em 08/11/2014
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