500-SANTOS REMÉDIOS- Autobiografia

Viajando no tempo, convido o leitor a me acompanhar

a uma época entre os anos 1940 e 1950,

em uma pequena cidade do Sul de Minas Gerais.

No quintal de cada casa havia pequenos canteiros cultivados com ervas medicinais para chás e pequenos problemas de saúde. Os habitantes, constituídos, na sua maioria de imigrantes italianos e suas famílias numerosas tinham trazido, com as escassas bagagens, conhecimentos de uso das ervas que datavam de séculos. Era grande a variedade de espécies cultivadas com cuidado. Cada família tinha predileção por esta ou aquela erva, e havia intensa troca, dependendo das necessidades imediatas de cada uma.

O uso de chás era corriqueiro, e tomava-se chá para tudo, desde dores de cabeça até “ventre virado” ou “nó nas tripas” ou inflamações, machucaduras, e todos os males. Para qualquer mal, havia sempre um chá. As comadres e vizinhas tinham sempre um “santo remédio” para qualquer sintoma, desde que não fosse muito grave.

Mamãe era quem cuidava do grande canteiro com hortelã, arruda, poejo, erva de sete-nervos, um pé de guaco que se estendia sobre o pé de limão-china, camomila, erva-doce, erva-cidreira, boldo, rosmaninho, e muitas outras.

As práticas de uma medicina elementar, algumas misturadas com orações e novenas, eram muito mais usadas do que as eventuais consultas aos poucos médicos ou com os boticários, os quais, além das receitas grátis, forneciam ao mesmo tempo o remédio prescrito.

Sem falar nas “simpatias”, isto é, práticas não medicinais, como benzeduras, acompanhadas de palavras misteriosas e orações a santos desconhecidos. Aí funcionava a superstição ou a fé, dependendo do grau de espiritualidade do atendido.

Na família de Vovô Ricardo havia tudo isso. Ele tinha uma “receita” infalível para fazer desaparecer verrugas. Era grande a incidência de verrugas na população daquele tempo. Quase todos os dias, vovô era procurado para fazer uma benzeção. Usava um pedacinho de pele de porco, fresca (sempre havia à disposição, pois o açougue era próximo), que esfregava sobre a verruga do paciente, sussurrando palavras ininteligíveis. Depois, a pele era colocada ao sol, em lugar alto, para secar. Quando a pele ficava seca, a verruga caia. As pessoas normalmente voltavam para relatar o sucesso da benzedura e agradecer. Não havia pagamento, mas vi Vovô receber dúzias de ovos, frangos e até uma enorme réstia de alho de um morador da roça, em agradecimento.

Tia Guilhermina, que era minha madrinha de batismo, e morava na mesma casa, tinha diversas habilidades curandeiras: benzia os bebês recém-nascidos de “sapinho”, uma erupção que aparecia na boca dos nenês nos primeiros dias de vida, e os fazia chorar desesperadamente. De “mau olhado” ou quebranto (madrinha dizia “quebrante”) , também em crianças, pois algumas pessoas de “olho forte” teriam a faculdade de olhar para a criança de uma maneira não muito simpática. A criança ficava perrengue (este era o termo exato, como se fosse um diagnóstico), não se alimentava direito, tinha diarréia e outros sintomas. Para essas benzeções usava arruda e um copo d’água. Após a benzedura, a arruda era colocada no copo e quando murchava, o sapinho ou o mau olhado desapareciam.

Também curava dores nas costas, “jeitos” no pescoço e câimbras. Usava um novelo de linha (reservado para aquela prática de cura) do tamanho de uma bola de pingue-pongue, no qual uma agulha ficava espetada. Quando o cliente aparecia, ela tomava o novelo e ia passando a agulha com a linha, num ato com se estivesse costurando. Falava mesmo que costurava a dor.

Seu Júlio a procurava constantemente, pois fazia muitos movimentos bruscos no empório, com a sacaria, e pegava “jeito” nas costas constantemente. Um diálogo era recitado entre a benzedeira e o benzido, mais ou menos assim:

Madrinha: — Que cose?

Seu Júlio (ou qualquer outro, repetindo o que madrinha cochichava): — Espinhela caída, câimbra de perna, jeito de nuca.

Madrinha (passando a agulha entre as linhas do novelo): Assim mesmo eu coso.

Segundo seu Júlio, a benzedura era “tiro-e-queda”, curava de verdade.

Essas práticas, juntamente com os chás, eram o que se pode dizer “tratamento leve”, sem efeitos colaterais. Se não curasse, também não matava. Mas havia outras “terapias” que hoje se pode classificar como barbaria, embora a cura ocorresse em muitos casos.

Eu era um garoto franzino, sujeito a constantes resfriados, asmático e com constante inflamação das glândulas na garganta. A garganta ficava dolorida, difícil era o ato de engolir sólidos e o apetite acabava por completo. Numa época em que não existiam antibióticos, o único tratamento recomendado era “pincelar” a garganta com algodão enrolado na ponta de um lápis, embebido em azul de metileno. O tratamento não era dolorido e o efeito era rápido. Mas as ânsias causadas resultavam geralmente em vômitos e mais enfraquecimento.

A amídalas continuaram inflamando-se até que, aos oito anos, fui submetido a uma cirurgia (“operação de garganta”) muito comum naqueles tempos para quem sofria de amidalite. Extraídas as glândulas, não havia mais inflamação daquelas sentinelas do organismo.

Para as crises de asma, dois processos externos eram usados: angu de fubá, aplicado em cataplasmas quentes nas costas. Folhas de sete-nervos (uma planta de poderoso efeito anti-inflamatório) eram colocadas na cataplasma. Eu permanecia deitado de bruços, sem camisa. Mamãe vinha com a cataplasma quente e por vezes o calor era tão intenso que chegava a queimar a pele, fazendo grandes bolhas.

Ainda para a asma, quando os ataques eram mais fortes, aplicavam-se ventosas, um processo perigoso. Consistia em colocar em um copo um pedaço de algodão embebido em álcool. O algodão era inflamado e a boca do copo era aplicada nas costas. O fogo apagava-se e o ar, rarefeito, “puxava o sangue” para aquela área, forçando a irrigação no local. Acreditava-se que o sangue, sugado para os pontos onde se aplicavam as ventosas, melhorava o estado asmático. Não sei se funcionava. O que sei é que as costas ficavam vermelhas, pois o calor da chama quando o copo era aplicado, queimava a pele, tal qual a cataplasma.

Continuei sofrendo asma pela puberdade e adolescência. Só fiquei livre desse mal aos vinte e quatro anos, quando, casado há apenas três meses (em seis de janeiro de 1959) tive uma crise terrível. Minha esposa cuidou de mim com o desvelo e o despreparo de uma recém-casa. Depois, nunca mais. Desconheço as causas da cura. Tanto poderiam ter sido as diversas viagens de avião que fiz nos meses antecedentes, como a mudança de hábitos da vida de solteiro para a de casado. Ou simplesmente o amor de minha esposa?

Como sabemos, nenhuma terapia é eficiente se não for feita com amor. Por isso que aquelas benzeduras e práticas, os chás e os remédios caseiros eram sempre chamadas SANTOS REMÉDIOS.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 25 de junho de 2008

Conto # 500 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 07/11/2014
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