É DE OUTRO MUNDO

Depois da cirurgia, Aldenor Filho ficou com a voz fanhosa. Arrancaram-lhe pelo lado esquerdo do pescoço um tumor maligno. A cicatriz mostrava que a operação fora difícil e delicada. Sua voz mudou, ficou embolada, de modo que as palavras eram pronunciadas sem nitidez. Até recentemente, possuía uma voz potente e metálica. Seu amigo Pedro da Aparecida lhe falava, com ironia, que ele deveria ter seguido a profissão de locutor, porque tinha uma voz privilegiada. Agora, mesmo sem a bela voz, Aldenor Filho não ficava deprimido.

Apenas não gostava de uma coisa: que pessoas estranhas e até mesmo conhecidos perguntassem a ele as causas daquela cicatriz no pescoço e do falar com a língua enrolada, como se estivesse sendo enforcado.

Durante pouco tempo parou de fumar após a operação. Pedro da Aparecida pensou que Aldenor Filho fosse deixar o fumo. Que nada. A bebida e o fumo eram os seus companheiros inseparáveis. Era capaz de permanecer horas inteiras numa mesa de bar, sozinho, observando o cotidiano ou mergulhando em seus próprios pensamentos.Aboemia de Aldenor Filho era fenomenal. Poucas foram os dias de sua vida em que não bebeu pela noite adentro. Dividia o seu tempo entre a redação do jornal e os bares. E, à noite, a farra ia até o clarear da aurora.

Aldenor Filho consultou o relógio. Eram nove horas da noite. Lembrou-se dos esforços do seu pai para fazê-lo um brilhante advogado. Acabou sendo poeta, jornalista e boêmio. Amava essas coisas. Essa era a sua própria vocação. Tomou um gole de cerveja e tragou o cigarro com prazer. Pegou o telefone público instalado no bar e ligou para Pedro da Aparecida. Queria que este ficasse em companhia dele no botequim. Pedro da Aparecida disse que ia encontrá-lo.

Sentado, Aldenor Filho revelava tranquilidade, aparentando uma estátua. Tirou os óculos de míope, limpou-os com o lenço e os olhos fechados, colocando-os no rosto em seguida. Magro, cabelos pretos e fartos, era o tipo é do intelectual.

Não demorou muito, Pedro da aparecida surgiu na porta do bar, com os passos lentos, mãos nos bolsos. “ Como estão as coisas?” Perguntou Pedro da Aparecida.

“Bem”, respondeu Aldenor Filho, jogando o cigarro fora.

“Já estás fumando?”

“Não aguentei. Sou amante do fumo”.

“Tudo é uma questão de cabeça. Eu deixei de fumar por um problema estético”.

“Ah, esses negócio de estética nunca entrou em minha mente. Fumo por necessidade”.

Os dois ficaram silenciosos. Aldenor Filho pediu mais uma cerveja. Curtido pelo álcool, experimentava uma suave euforia provocada pela cerveja, sem ficar embriagado. Pedro da Aparecida bebia devagar e moderadamente. É verdade que às vezes embriagava-se e aí exaltava-se e ficava eufórico. Bebia nos fins de semana e não diariamente como Aldenor Filho.

“Acabei de escrever um romance”, disse Aldenor Filho

“Foi mesmo?” Indagou admirado Pedro da Aparecida.

“A história gira em torno de um comerciário que sonha tornar-se capitalista”.

“Bom tema. Original até”.

“Pelo menos, não li nada igual. Pode até ser que exista”.

“Rapaz, tu escreveste muito rápido, porque há um mês não falaste nada sobre o livro”. Pedro da Aparecida coçou a barba branca com seu ar místico.

“Escrevi o romance em 15 dias. Também não sai da máquina enquanto não terminei”. Aldenor Filho bebia e fumava incessantemente.

“Eu já sou diferente. Escrevo devagar, sem pressa”.e

“E, cada pessoa escreve de acordo com a sua própria índole e as circunstâncias. Aprendi a escrever rápido. Trata-se de um ritmo que o jornalismo nos impõe. Quando estamos trabalhando num jornal, a gente tem que escrever depressa, para que o leitor compre o jornal de hoje nas bancas”.

“O jornalismo é uma escola importante para o escritor. Não passei por ela. Comecei direto em minha arte. Gostaria de ler o teu romance antes de publicado”.

Saíram. Aldenor Filho andava devagar e apoiado no ombro de Pedro da Aparecida. Na meia idade parecia um velhinho. Estava muito diferente de há dez anos atrás, quando caminhava rápido pelas ruas como se estivesse atrás de um furo de reportagem.

Despediu-se de Pedro da Aparecida e entrou em casa. A sua mulher, dona Marlene, nascera para Aldenor Filho. Trabalhava nos afazeres domésticos da manhã à noite para servir ao marido e aos filhos. Na hora do almoço, colocava os pratos na mesa e chamava com ternura Aldenor Filho e os garotos. A cabeceira da mesa era reservada para ele. Para Aldenor Filho nada faltava. Limitava-se a olhar, vagamente, para as pessoas e as coisas, como se encontrasse em um mundo à parte. Comia pouco demonstrando fastio. Somente não dispensava o suco de laranja. Este era bebido com gosto. Já os meninos almoçavam com apetite e ainda pediam mais. Dona Marlene falava, pacientemente, que se devia comer para viver e não viver para comer.

Aldenor Filho dormia pouco. Dizia para os colegas de farra que teria muito tempo para dormir depois da morte. Por isso, suportou noites e dias trabalhando e bebendo, sem repouso. Ultimamente, escrevia as matérias para o jornal em casa, onde passava a maior parte do tempo. Apesar de debilitado, redigia com rapidez impressionante, mostrando uma velocidade na máquina de escrever de fazer inveja. Se não tinha mais vigor nas pernas, continuava lúcido e com raciocínio ágil. Na cidade, a sua competência profissional virou fama e mito. Suas crônicas e reportagens eram páginas admiráveis da imprensa.

Ele acordou com diarreia. Era uma coisa rotineira no seu dia-a-dia. “A cerveja é uma bebida diarreica”, afirmava. Às vezes, ia ao banheiro até cinco vezes. Tomava alguns compromidos. Aí sentia alívio.

Estava preocupado com a festa de quinze anos de sua filha Berenice. Iria tentar fazer uma comemoração mesmo simples em sua casa. Telefonou para amigos influentes para conseguir bebidas e salgadinhos. Dirigiu convites para pessoas de sua estima e intimidade.

No dia do aniversário amanheceu até mais disposto, chegando a pensar que iria melhorar de saúde. Levantou-se da cama sem dificuldade, caminhando mais firme. Dona Marlene observou com seus olhos azuis e piedosos a disposição de Aldenor Filho e ficou contente.

A partir das oito horas da noite começaram a chegar os convidados. Pedro da Aparecida, a mulher, os filhos e outros amigos foram os primeiros a aparecer. A casa de Aldenor Filho tinha um terraço, onde foram colocadas a mesas e cadeiras. Garçons vestidos de branco e preto serviam os convidados. A aniversariante foi apresentada pelo pai a cada um dos presentes. Nos seus quinze anos, ela exibia os contornos de futura mulher. Era branca, loura e de olhos azuis, como a mãe.

Pedro da Aparecida conversava em uma mesa com gestos calmos. Aldenor Filho andava de mesa em mesa, falando com as pessoas. Sua maneira de andar, até lépida, recordava os velhos tempos, chegando a surpreender a Pedro da Aparecida, que disse em seu ouvido:

“Você hoje está novinho. Tomou algum elixir da longa vida?”

“É a juventude da minha filha que me contagiou”, respondeu sorrindo.

“Vamos ver se a gente chega até o final do século”, falou Pedro da Aparecida.

“Isso eu não te prometo”, disse Aldenor Filho, afastando-se para atender a um chamado de dona Marlene.

Os convidados tiveram a atenção voltada para o anúncio de que chegara o momento do pai dançar a valsa com a filha. Todos ficaram concentrados na valsa que começou a tocar. Aldenor Filho e a filha dançaram com desenvoltura na sala iluminada, arrebatando aplausos dos convidados. Ele dançou sa tisfeito e emocionado.

Nessa noite, após a festa, Aldenor Filho roncou tanto que incomodou a mulher a seu lado na cama. Despertou cedo e sentiu vontade de beber uma dose de vodka. Durante a festa, tomara apenas um cálice de champanhe para brindar os 15 anos da filha, depois de apagadas as velinhas e cantar o “Parabéns pra você”.

Escovou os dentes amarelecidos pela nicotina do fumo. Saiu em direção ao botequim mais próximo. Encontrou um aberto e pediu um conhaque, porque não havia a vodka que queria. Bebeu em jejum quatro doses, fumando um cigarro atrás do outro. Tossiu muito devido a uma antiga bronquite.

Ali, anestesiado pelo álcool, Aldenor Filho sentiu saudades dos anos passados, quando, com saúde, amanhecia bebendo em companhia de outros boêmios e de mulheres. Achava bela a boemia. As imagens do passado surgiam à sua frente como se estivesse sido transportado para aquele tempo.

Voltou para casa sentindo um mal estar. As pernas tremiam e uma fraqueza tomava conta do seu corpo. Com muito esforço, conseguiu chegar ao portão, segurando-se nele para não cair. Dona Marlene, que estava no terraço, veio socorrê-lo, rebocando Aldenor Filho no ombro até o quarto. Ele estava pálido e suava. A testa e os pulsos gelados.

Dona Marlene ficou preocupada com o marido. Telefonou para o médico que cuidava dos problemas de saúde de Aldenor Filho. Ela foi aconselhada a interna-lo num hospital.

Pedro da Aparecida estava tranquilo em casa lendo um romance quando foi informado de que Aldenor Filho tinha sido hospitalizado. Dona Marlene deu-lhe o número do apartamento da casa de saúde em que se encontrava o marido. Pedro da Aparecida anotou com atenção e disse que iria vê-lo no sábado.

Segundo o médico, era grave o estado de saúde de Aldenor Filho. Não falava mais, apenas gesticulava. Alimentava-se com soro. Dona Marlene não se afastava um minuto sequer do leito do doente. Sua dedicação era total. Ajeitava a cabeça do marido na cama. Acompanhava as aplicações dos médicos. Não dormia. Cochilava.

Sábado. Pedro da Aparecida esperava chegar a tarde para visitar o amigo no hospital. Sentado na poltrona da sala em casa, ligou a televisão para assistir ao noticiário. Distraído, acariciava um gatinho deitado ao seu lado. O apresentador do telejornal deu a notícia com muita ênfase:

“Morreu hoje o jornalista Aldenor Filho. O sepultamento vai ocorrer logo mais às 16 horas no Cemitério São João Batista. Aldenor Filho tinha quarenta anos e morreu em consequência de cirrose hepática”.

samuel filho
Enviado por samuel filho em 05/11/2014
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