493-ONÇA NO MATO, PIRANHA NO RIO, BOI NO PASTO História do Cangaceiro Lampião

O Velho Chico se espraia com preguiça sobre as margens de areia branca. Coqueiros formam a franja que determina o fim da areia e o começo do terreno plano onde se situa a pequena cidade. Ao lado da praia desemboca o córrego das Piranhas, que deu nome à vila, elevada à condição de cidade no final do século XVII.

É antiga, dos tempos coloniais, foi visitada por Dom Pedro II e mantém o bucolismo e o pitoresco daquelas épocas. A estação ferroviária, situada no centro da cidade, desativada, relembra os antigos dias da maria-fumaça ligando Piranhas a Petrolândia. Passando pelo portal que ostenta o nome da cidade, o turista sobe até o segundo andar, uma ampla sala de balcões com gradis de ferro de Milão e vitrais coloridos importados de Murano, ilha de Veneza.

É na praia, junto aos barcos dos pescadores, que reside o maior encanto do local. O rio passa tranqüilo enquanto a movimentação dos ribeirinhos marca a areia com suas idas e vindas. Crianças brincando, pescadores saindo de madrugada e voltando no meio da manhã. Turistas o dia todo e até à noite, em volta de uma barraca simples onde seu Raimundo serve peixe frito, cerveja gelada e conversa gostosa.

— Por aqui, num existe homem sem valentia. Os perigos tão por toda parte. Na caatinga, é cobra de toda qualidade de veneno. Nas praias e beira rio, os jacarés não dão moleza. E dentro do rio, tem as piranhas. Pra viver aqui, tem de ser corajoso.

Batendo a mão na testa, exclama:

— Pois num é que hoje tá fazendo anos da caçada da ultima onça dessas bandas? — Perguntando como quem já sabe da resposta, fica por um momento calado, fazendo suspense, esperando que alguém o interpele.

— O senhor se lembra de quando tinha onça por aqui?

— Xente, se me lembro. Essa caçada famosa já faz mais de sessenta anos. Foi muito antes da represa. A Maria-fumaça ainda fazia a viagem, subindo a serra, indo até Petrolina. A locomotiva puxava três vagões: dois de passageiros e um de carga. Uma tartaruga, pra falar a verdade.Na subida da serra, os passageiros podiam descer dos vagões, catar alguns umbus e voltar, com as caras lambuzadas, aos seus lugares. Foi numa dessas ocasiões que a pintada apareceu, correndo atrás do pessoal e arranhando a perna de um molecote. Não foi nada de grave, mas o pessoal da estrada-de-ferro tomou a peito a caçada daquela ameaça aos passageiros.

— E o senhor tomou parte na caçada?

— Sim, senhora, eu era um rapazote, tinha vinte anos. Com minha Flaubert de dois canos, e com mais de vinte companheiros. Foi num domingo, como hoje. Saímos de trem, e no começo da subida da serra do Angico, descemos e começamos a bater a caatinga. Separamos em cinco grupos, cada um foi numa direção, seguindo as pistas deixadas pela bichana. Meu grupo foi subindo a serra, das bandas do Angico Velho (que foi onde Lampião foi morto). Ouvimos uns tiros do outro lado do morro.

— Acharam a bandida. — Disse um dos companheiros.

— Vamos com cuidado, A bicha pode fugir pro lado de cá.

Dito e feito. Acuado de um lado, o gatão veio pro nosso lado. De longe ouvimos o miado.

— Tá ferida. Reconheço o miado. — Falei.

— Pior ainda. Fera ferida é cem vezes mais perigosa. — Outro caçador comentou.

Ficamos atentos. Confesso que estava com medo. Pois não é que a bicha acabou pulando quase que no meio do nosso grupo. Tava sangrando no quarto traseiro e vinha furiosa. Um tiro certeiro de minha espingarda, na testa, derrubou a bichana.

— Era grande?

— Vixe! Pesava umas dez arrobas e tinha mais de três metros, do focinho até a ponta do rabo.

— E jacaré? Tem muito?

— Tão mais arisco, mas ainda tem. Mas é proibido caçar.

— Piranha ainda tem?

— Também tá difícil. Mas elas já dominaram o rio. Os pescadores não gostam delas, fazem despacho e engodos para espantar as bandidas. Tanto assim, que rareou. Mas a carne é boa. Quando pescam algumas, trazem aqui pra minha barraca, e a freguesia gosta por demais.

E continuava a conversa entre servir copinhos de cachaça, pratos de bacus e piaus fritos, cerveja e refrigerantes.

— O lugar aqui é respeitado. Nem Lampião entrou na cidade. Quando passou por essas bandas, com seu bando, ficou estacionado em Angico, a serra onde matamos a onça que já falei. Fica a légua e meia, quer dizer, uns dez quilômetros daqui da cidade. Ele não entrou por respeito à padroeira de Piranhas, Nossa Senhora da Saúde, que era madrinha do cangaceiro. E foi lá em Angicos que ele foi morto.

— Então, a padroeira não protegeu o afilhado, hein, seu Raimundo?

— Olha o respeito, moço. Mas o negócio foi até curioso.

— Curioso? Como assim?

Seu Raimundo se entusiasma e enfatiza as palavras.

— Pois então, Lampião e o bando se acoitaram numa propriedade na serra do Angico. Lugar de difícil acesso. O dono era de confiança de Lampião. Ele carecia de mantimento, roupas e miudezas para seu bando. Pediu a outro coiteiro, um tal de Antônio Piçarra, pra descer até a Piranhas e comprar o necessário. Como era muita mercadoria e pra não dar nas vistas, Piçarro foi comprando aos poucos e escondendo no mato, para levar, mais tarde, até a grota onde estavam escondidos os cangaceiros. Mas era muita coisa comprada no comércio da cidade. Foi preciso três viagens de mulas para levar o comprado serra acima. Um sargento de Angico, desconfiado da movimentação na serra, acabou descobrindo tudo. Manda então um telegrama para o delegado de Piranhas, em código: “Boi no pasto. Venha Urgente”. Naquela época, corria na policia de todos os estados, que Boi no Pasto significava que Lampião tava por perto.

Foi num sábado de madrugada que o bando de Lampião foi surpreendido pela volante...

— Volante? Que é isso? — Perguntou um dos ouvintes, talvez turista de longe.

— É, volante. Era assim que se chamavam os grupos especiais que caçavam Lampião. — Prossegue seu Raimundo. — A volante era de mais de trinta homens, armado até os dentes, como se diz. E pegaram o bando de lampião de surpresa, ainda dormindo. Foi uma chacina. Degolaram onze cangaceiros, entre eles Lampião e Maria Bonita.

E a conversa segue até altas horas. Enquanto permanecer um ouvinte, Seu Raimundo vai espichando suas crônicas. Dentre todo o pitoresco de Piranhas, ele está em primeiro lugar.

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 13 de maio de 2008

Conto # 493 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 05/11/2014
Reeditado em 05/11/2014
Código do texto: T5024324
Classificação de conteúdo: seguro