CÚMPLICE DO ATO

Ainda era dia, num final de tarde que se arrastava pesarosamente, numa data não identificada numa ampulheta quebrada.
Só lembro que chovia torrencialmente isto, no entanto, não impediu que eu casualmente visualizasse um carro parado em frente à minha casa.
Fiquei observando o veículo e imaginando que a visita seria pra mim. Quem sabe “ele” aguardava o momento propício para descer ou talvez ele trouxesse um ramalhete de flores do campo com chocolate a dois.
Nem me importaria se a chuva continuasse caindo, pois assim ninguém atrapalharia a chegada da lua no portal na troca de turno com a chuva que caia...
Momentos depois, outro carro parou atrás daquele. Mais uma visita eu pensei e então ansiosa aguardei...
Num largo sorriso uma mulher abriu a porta de seu carro, como se estivesse convidando a alegria para sentar ao seu lado. Recebeu o mesmo sorriso dos outros lábios que vinham ao seu encontro.
Houve sintonia, brilho, magia na troca de química que só eu presenciei da janela indiscreta de meu quarto. Agora não eram mais desconhecidos pra mim.
Eu passara a ser a anônima testemunha, álibi e cúmplice do ato. Simultaneamente minha libido desapareceu ao perceber que o príncipe não era para mim.
O carro que ficou estacionado e passou a ser minha companhia, ambos em silêncio conversamos. Ficamos ali, olhando um para o outro, o carro e eu, ambos exilados, velando todos os momentos em que eles estiveram fora. Brincavam novamente de ser feliz, provavelmente saciando as saudades que a tanto, com certeza doía trazendo frio na barriga.
Eu consegui acompanhar o casal até a esquina somente com o olhar, mas vi quando sorriram da sorte grande que tinham.
Provavelmente eles iriam se embriagar de beijos e abraços enquanto eu nada poderia ver ou fazer, muito menos o carro abandonado.
Mesmo assim, percorri todo o caminho com eles, pois os que não vivem o amor de verdade como eu, ficam imaginando os momentos dos outros, colorindo os balões do pensamento com tinta colorida, para não deixá-los tão apática, sem brilho no livro de cabeceira antes de ir dormir.
Definitivamente, eu não seria a testemunha de acusação, embora não tivesse argumentos a favor do que testemunhara.
Simplesmente eu concluíra, que mal aos outros dois eles não faziam. Provavelmente depois, eles é que mais sofreriam por estarem roubando momentos de felicidade. Aquela era apenas uma maneira de poderem continuar levando a vida em preto e branco que tinham.
Aqueles amantes, à margem da sociedade na verdade, só queriam sentir novamente, a inebriante chama do amor escondido, a mim revelado dentre a burca proibida.
Por qual motivo se escondiam? Filhos, parentes ou amigos? Com certeza, ninguém os apoiaria. Acredito que eles vivam como dois estranhos, tratando-se por senhor e senhora polidamente, principalmente quando chega gente. Bem sei que o que os leva a seguir em frente carregando o corpo dormente:  É a esperança de um ao outro se tocar novamente para deixarem de conversar pelo Braille, inventado pela elite que não consta no censo.
Como posso ser testemunha de acusação de algo que os dois aparentemente sentem?
Façamos um parêntese!
O carro continua estático, aguardando o retorno de sua dona.       Se não fosse inanimado, pediria para ir junto ao comboio, mas não podem sair acompanhados. Se acaso se encontram na multidão, mal se reconhecem, apenas trocam um longo beijo e abraço com o olhar, ambos querendo ficar, mas devem disfarçar e se afastar rapidamente, com receio de que ouçam o bater forte dos corações gritando descompassados.
Aqueles outros, que os rodeiam,  não podem jamais suspeitar do caso, haveria muita infelicidade esparramada,  devido o brilho no olhar. Eles não querem a ninguém machucar!
Mas se há amor senhor juiz, por que não podem os dois libertos ficar? Que maldade há em vez ou outra um no outro jorrar?
Será que há pessoas que fazem sexo sem amar?                        Prefiro nem nisso pensar!
Aqueles dois, que agora gritam em êxtase o nome um do outro, devem ser do tipo de almas gêmeas que se perderam no tempo de Mário Quintana, daqueles semideuses que se encontram de dia, apenas vez ou outra para se abastecer de amor.
Não fazem mal a ninguém e pagam sua pena perpétua com a própria dor da liberdade vigiada dia após dia.
Que carícias eles trocaram? Que segredos foram revelados? Bem sei eu que tudo foi feito em quatro paredes, apenas com o espelho observando a utopia tornar-se realidade.
Ah... Já fiz muitos rascunhos assim, pois não os vivi nessa vida tão milimitrada. E eis que agora, eu tenho a chance de ser cúmplice desse cálido ato “covarde” de paixão.
Senhor juiz, não os condene a tantos anos de exílio assim, eles só roubaram momentos para serem felizes, nada mais do que isso. Nem sei quando vão se encontrar ou se vão continuar fugindo e escondendo tal sentimento.



Como não há lei para culpar o amor proibido que foi sussurrado  desde antes de Ágora. Eu sugiro que antes de dar a sentença a eles, que deve prender a mim, (suposta ré primária), pois não posso o retrato falado deles desenhar!
Seria como se eu estivesse traindo o próprio cupido, que às vezes, atira as flechas de olhos de olhos semicerrados.
Que culpa eles tem, se eu estava ali, no momento exato deles serem novamente felizes?
Não posso acusá-los!
Que prendam a mim somente, porque já estou acostumada a ler, reler e viver todos os romances escritos no século passado, daqueles que não tiveram um começo com final feliz...
Além disso, todos os outros carros que porventura pararam em frente a minha janela, ou já levavam a sua passageira, ou pararam por ledo engano.
Que seja eu julgada culpada, condenada a usar letra escarlate de “pecadora” no peito bordada.

Sou a única cúmplice do ato.

Railda
Enviado por Railda em 04/11/2014
Reeditado em 17/07/2016
Código do texto: T5023467
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