491-ZÉ PINA- Pequena Biografia
Visitamos Zé Pina ontem à tarde. Eu e Beatriz, que havia me dado notícias dele:
— Está num sofrimento sem alívio. Paralítico, não sai da cama. Vive como um animal. Faz xixi e cocô no leito. Precisamos fazer alguma coisa por ele.
— Onde é que êle está? — Perguntei.
— No sítio do Marciano. O cunhado está cuidando dele.
Eu estava passando o fim-de-semana na cidade onde nasci, visitando parentes e encontrando-me com velhos amigos. Pedi ao meu cunhado o jipe emprestado e lá fomos pela difícil estrada de terra. A velha estrada de carro de bois nunca fôra consertada pela prefeitura, pois parecia levar a lugar nenhum Mas ia, sim, terminar na Grota Funda, um lugar ermo e triste. Terras ruins ao redor isolavam a pequena propriedade de Marciano. Só de jipe para chegar naquele socavão.
Zé Pina era meu primo, bem como de Beatriz. Meio retardado, foi criado por minha mãe, que o levou consigo quando se casou. Lembro-me dele me carrengando, com meu irmão num carrinho de caixote com varais. Teria, nessa ocasião, dez anos e sua função resumia-se em brincar conosco, enquanto minha mãe limpava casa, lavava roupa, preparava as refeições ou fazia doce de leite para vender. Quer dizer, ficávamos juntos o dia todo.
Na minha infância, até que foi boa companhia. Mas à medida que fui crescendo o seu retardamento foi atrapalhando. Não freqüentou a escola, ou melhor, fez o suficiente para aprender assinar o nome e soletrar palavras.
Quando cresceu e virou rapazote, foi morar no sítio do tio Salustiano e Tia Naná. Apesar de franzino, foi trabalhar na olaria, um trabalho pesado até para homens fortes. Batendo tijolos chegou à idade adulta, quando seu retardamento se tornou mais evidente. Eram tempos cruéis em que pessoas retardadas não mereciam o menor respeito. Pelo contrário: Zé Pina era alvo de chacotas e gozação por parte dos outros trabalhadores na olaria. Como não podia reagir, tornou-se um resmungão. Falava sozinho o que só ele entendia. Piorando cada vez mais seu estado mental.
Chegamos no sítio, distante umas dez léguas da cidade, ou seja, mais de sessenta quilômetros, já ao entardecer. Marciano veio abrir a porteira, atendendo às buzinadas. Homem grande, imenso chapelão que escondia as feições rudes do trabalhador rural. Mas de uma bondade sem limite. Casado com a irmã de Zé Pina, Custódia, que também era meia abobada, um pouco menos do que o irmão.
A casa situava-se no centro de terreiro limpo de mato, ciscado por galinhas. Mas sujo de sabugos, palhas de milho, capim seco e por todo lado pelotinhas de bosta de cabrito. De alvenaria, o reboco caíra em muitos lugares, principalmente ao redor de portas e janelas. Do telhado negro brotavam esguios pés de pecado-de-homem. A impressão era de uma propriedade abandonada.
Mas havia vida. Além das galinhas e de um bode que correu, fugindo, vi duas pessoas que não reconheci.
— Dito! Ceição! — gritou Marciano, chamando. — Venham falar bom dia pra Beatriz e pro Tunico.
Então reconheci os dois irmãos de Zé Pina, igualmente retardados. Conceição era uma verdadeira débil. Boca torta, sem dentes, cabelos despenteados, o vestido simples pendendo dos ombros. Balbuciou alguma coisa e babou, estendendo a mão. Os olhos baços não mostraram reconhecer-me ou a Beatriz. Dito também se aproximou e da mesma forma nos cumprimentou, como se fosse adestrado e sem consciência do que estava fazendo.
Marciano antecipou-se a qualquer pergunta:
— Eles estão morando aqui desde que o pai deles morreu. Custódia fez questão de trazer eles pra cá. Não tinham pra onde ir.
Lembrei-me do velho tio Angelim, pai de Zé Pina. Morava numa fazenda de café e, sendo ele mesmo bastante curto de inteligência, nunca superou a vida miserável de colono. Era viúvo há muitos anos e os filhos em nada o ajudavam. Apenas Custódia tinha algum discernimento e deu sorte em se casar com Marciano.
— Viemos ver o Zé Pina. — Disse Beatriz, após as formalidades iniciais. — Como ele está?
— Cada vez pior. Mas vamos entrando. A casa é sua.
Entramos. Da pequena sala sentimos o fedor. Custódia veio da cozinha, enxugando as mãos no avental.
— Não arrepare a casa. Ainda nem deu tempo pra varrer hoje. Nem pra trocar o Zé.
Sem maiores formalidades, abriu a porta do quarto que dava direto para a sala. O mau cheiro aumentou. Beatriz, mais familiarizada com os primos, foi na frente. Fui em seguida.
O quarto estava com a janela fechada. Na obscuridade vimos o vulto deitado. Custódia abriu uma folha da janela. Então vi, horrorizado, a figura encarquilhada e enrodilhada do primo. Não estava coberto e vestia uma camisola. Deitado de lado, não movia sequer a cabeça. Parecia dormir.
Beatriz abaixou-se e colocou a mão na sua cabeça. Ele abriu os olhos e a olhou. Reconhecendo-a, esboçou um sorriso. Murmurou qualquer coisa que não entendi.
— Oi, Zé, sou eu, a Beatriz.
Ele piscou várias vezes. Um esgar e uma tentativa de levantar o braço foram os sinais de que ele a reconhecia.
— O Tonico também está aqui. Veio ver você.
Ajoelhei-me ao lado do catre. Passei a mão pela sua cabeça e apertei-lhe a mão. Era uma garra, os dedos retorcidos e unhas enormes, pretas de sujeira.
O cheiro de urina e fezes era insuportável ali dentro do quartinho. Nada mais havia senão a cama, um urinol, uma mesinha de cabeceira com alguns vidros de remédio. Pela poeira que cobria os vidros, perceptível de longe, fazia tempo que não davam nenhum remédio ao farrapo humano.
Ante a inutilidade e o desconforto em permanecermos dentro do quarto, saímos, voltando para a sala.
— Vou passar um cafezinho. — Disse Custodia, indo apressada para a cozinha.
— Ele tá piorando todo dia. — Custódio explicou. — Tenho de trocar o lençol duas, três vezes por dia. A gente não dá conta de limpar ele direito. Custódia não agüenta com ele. O Dito e a Ceição, ceis viram, também só dão trabalho.
A paciência de Marciano com os cunhados parecia coisa de santo.
— Que é que a gente pode fazer? — Perguntei. — Posso trazer um médico, comida...?
— Ele come muito pouco, tem de ser só sopa ou caldinho, ele não mastiga. Até o pão tem de ser desmanchado no café com leite. Ultimamente tá comendo muito pouco.
— A gente pode tentar levar ele pra Vila Vicentina. — sugeriu Beatriz.
— É, vê se oceis consegue. Eu já tive lá, mas me disseram que não tem vaga. — Disse Custódio.
— Que coisa, hein? Inda mais pra ele, que ajudava tanto nas festas de São Vicente.
Beatriz se referia ao tempo quando Zé Pina, com a idade, ficou mais “manso”, conforme diziam lá em casa. Então, passou a morar de novo na casa de meus pais, já idosos. Na cidade, ganhava um dinheirinho capinando e limpando quintais, cuidando de hortas e jardins. E entrosou-se com um grupo de pessoas piedosas, os vicentinos, que se encarregavam de manter a Vila Vicentina, local de residência de idosos abandonados.
Zé Pina cuidava da horta da Vila. Andava por todo o recinto da vila, conversava com os velhinhos e dizia:
— Quando ficar velhinho, quero morar aqui.
Depois, passou a ajudar nas quermesses que organizavam durante o mês de julho, para angariar fundos.
Dava gosto ver como ele se sentia feliz em ajudar armar as barracas, pregando as ripas e estendendo os toldos: e de noite, ajudava no bar, providenciando gelo, lavando copos e muitas vezes, até servindo os freqüentadores nas mesas. Tornou-se um elemento indispensável na organização da tradicional festa.
E repetia sempre:
— Quando ficar velho, vou morar na Vila Vicentina.
Voltamos calados do sítio de Marciano. O sacolejar do jipe em nada ajudava a conversa. Mas quando chegamos à cidade, Beatriz, falou:
— Amanhã vou conseguir um lugar pra internar o Zé Pina na Vila Vicentina. Você vem comigo?
— Claro! — Respondi. — Mesmo porque acho que eles devem isto ao Zé Pina.
E no domingo de manhã, lá estávamos Beatriz e eu, procurando o diretor da Vila Vicentina. Ele estava na missa, tivemos de esperar uma boa meia hora. Quando chegou, mostrou-se surpreso com nossa presença.
— Dona Beatriz! Há quanto tempo! E o senhor, doutor Antônio, que prazer em revê-lo.
Era visível a untuosidade de suas maneiras. Queria agradar e ao mesmo tempo mostrar-se importante.
Beatriz foi direto ao assunto. Eles já se conheciam bastante bem. Contou do nosso parentesco com o Zé Pina e da necessidade de assistência.
— Inclusive estamos dispostos a pagar pela sua manutenção.
— Infelizmente, dona Beatriz, não podemos aceitar pessoas doentes aqui na Vila. Não temos estrutura. Só contamos com a visita de um médico duas vezes por semana. Não temos enfermeira ou quartos para os doentes.
— E como faz quando eles ficam doentes?
— Damos um jeito de interna-lo no hospital . Mas tem o processo burocrático. Todos os velhinhos que moram aqui na Vila recebem a aposentadoria do Instituto. Quando vão pra Hospital , a pensão do velhinho passa a ser paga ao hospital.
— Pois é. O Zé Pina ajudou a Vila o quanto pode. Pensava em acabar os dias aqui. — Falei.
— Ele recebe aposentadoria? — Perguntou o diretor.
— Nem sei. Mas acho que não. — Ela respondeu.
Deixamos a Vila Vicentina desanimados. Mas Beatriz era lutadora.
— Vou ao hospital hoje de tarde. Você vem comigo?
— Claro. Afinal, o que ele precisa mesmo é de medicação e alimento.
Na Santa Casa, domingo de tarde, só conseguimos falar com uma secretária de plantão. Explicou-nos que sendo um internamento de longa duração, o paciente só seria aceito mediante pagamento de diária e ressarcimento das despesas com medicamentos e material como fraldas, etc.
— Sabe, Beatriz, se nós mesmos não arcarmos com esta despesa, não conseguiremos tirá-lo de lá.
— Vamos procurar outros primos, ver quem pode colaborar.
Decidi permanecer aquela semana na cidade, a fim de ajudar Beatriz. Graças à sua simpatia, conseguiu o compromisso de ajuda mensal de outros primos, o que possibilitaria a manutenção de Zé Pina no hospital por alguns meses.
Na quinta-feira, de manhã, contratamos a ambulância para trazer Zé Pina para o hospital. Fui com os dois homens. A estrada, devido às chuvas da estação, estava pior do que na semana anterior. Atoleiros nas partes baixas da estrada, Nas subidas, o carro deslizava. Faltavam ainda uns dez quilômetros para chegarmos à Grota Funda, quando vimos um cavaleiro vindo na direção contrária. Fez um aceno e ao se aproximar, reconheci por debaixo do chapelão, o Marciano, que acenou e fez sinal para que parássemos.
— Parem. É o cunhado do Zé Pina. Dono do sítio para onde vamos.
E falei da cabine:
— Bom dia, Marciano!
— ’Dia, seu Tunico.
— Estamos indo pro seu sítio. Viemos buscar o Zé. Vamos levá-lo para o hospital.
— Carece não, seu Tunico.
— Como, não carece? Que aconteceu?
— O Zé amanheceu morto. Eu tava justo agora indo pra cidade pra providenciar o enterro.
Confesso que não fiquei surpreso. As condições em que ele vivia não indicavam que muito tempo de vida. Conversei com o motorista. Ele concordou.
— Vira o cavalo, Marciano. Vamos levar o corpo na ambulância.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 30 de abril de 2008
Conto 491 da Série Milistórias