490-A MORTE DE FELIPE CURADOR-

Acordei com batidas frenéticas na porta da entrada. Levantei-me, coloquei um xale sobre os ombros e fui atender.

— Por favor, venha depressa. Papai está muito mal. — Com voz angustiada, Solange procurava transmitir a urgência de seu pedido.

— Que aconteceu? — Surpresa, escancarei a porta. — Entre. Me fala

direito o que foi.

Era domingo de manhã. O sol mal tocava aos telhados e um frio do resto da madrugada continuava. Solange entrou, esfregando as mãos. Vi o desespero estampado no rosto.

— Papai... Ele está passando mal. Teve um ataque, sei lá. A primeira

pessoa que pensei foi na senhora.

— Espera um pouco enquanto troco de roupa.

Enquanto me vestia decentemente, fui lembrando de Felipe, o pai de Solange. Conhecia a história dele, apesar de muito misteriosa. Havíamos sido colegas no grupo escolar e no ginásio. Era um menino quieto, mas muito atento nas aulas. Aos domingos, saia andando sozinho pelos campos, ao redor da cidade. Trazia coisas interessantes: galhos de árvores com parasitas (era como chamávamos as orquídeas), cachos de coquinhos que tentávamos arrebentar com pedras no pátio do colégio, flores do mato. Um dia trouxe um casco de tatu, credo, que coisa esquisita. Depois, foi estudar fora. Mas não terminou nem o curso científico. Embrenhou pelas selvas do Pará ou Amazonas, onde ficou durante muitos anos. Quando voltou, veio com uma filhinha, Solange. Hoje, uma bela moça, diferente das outras. Pelo formato do rosto oval, com olhos amendoados, lábios grossos e nariz um pouco achatado, percebe-se que é filha de índia.

Peguei minha bolsa, com algum material de emergência e entrei no carro de Solange.

— Como é que você deixou ele?

— Ficou deitado, descansando. Tá respirando com muita dificuldade. Dei um chá, que ele conseguiu tomar.

— Então é bom levar um médico. Passa na casa do doutor Nelson.

Ela dirigia com pressa. Defronte à casa do médico, descemos para conversar com ele. Depois que lhe explicamos a situação, concordou em ir conosco.

— Espere um momento. Vou apanhar minha valise.

Solange, apesar da pressa, dirigia com perícia. Mesmo assim, senti-me insegura quando ela tomou a estrada de chão. A poeira e a luz do sol ainda baixo no horizonte diminuía bastante a visibilidade. Ela afundava o pé no acelerador, jogando o carro para um lado e para o outro, a fim de evitar os buracos, sem frear nas curvas.

— Para que tanta pressa, menina? — Perguntei, procurando aliviar a

tensão

— Papai está mal. Estive lá ao amanhecer. Não se levantou, nada falou,

não quer comer nada. Aceitou apenas uma xícara de chá. = Ela explicou.

— Pelo que sei, não seu pai não permite a entrada de ninguém em sua casinha. — Disse o doutor.

— Sim. Há mais de dez anos que mora isolado lá em cima do morro. Só eu posso visitá-lo. Mesmo assim, só posso entrar quando a placa no alpendre me permite.

— Placa?

— Sim. Quando ele quer me receber, coloca uma placa na varanda. Ele mesmo escreveu, em letras grandes. ENTRE. Passo todos os dias defronte à casinha, vindo da fazenda para a cidade. Quando, de longe, vejo a placa, deixo o carro na porteira e chego até a casa. A porta está aberta e invariavelmente papai está sentado na salinha.

— E hoje...?

— Levantei-me cedo, bem de madrugada, com uma premonição, uma intuição. Papai precisa de alguma coisa, pensei. Fui até lá, e embora a placa não estivesse à vista, entrei assim mesmo. A porta estava entreaberta. A casa, deserta. Fui até o quarto, onde encontrei papai respirando com dificuldade, os olhos saltados, parecia sufocado. A roupa empapada de suor. Tremia de frio. Troquei imediatamente sua roupa, e a roupa de cama. Fiz um chá, esquentei o leite, mas ele recusou. Só tomou o chá. A respiração voltou ao normal e ele entrou num cochilo. Por isso fui buscar o senhor.

— Me lembro bem do seu pai. — Disse o médico, procurando manter-se firme apesar dos solavancos do carro. — Fomos colegas no curso científico. Eu estudava com afinco para o exame de medicina.Felipe, entretanto, não tinha objetivo definido. Introspectivo, dado a longos silêncios, não gostava das matérias necessárias para um bom desempenho no vestibular. Não estudava química, odiava matemática e redigia mal. Um dia ele me disse:

— Sei bem o que não serei. Cirurgião, jamais. Não agüento ver sangue.

— Gostava, entretanto, de analisar professores e colegas, e quando se abria comigo, um de seus poucos amigos, mostrava-se um verdadeiro psicólogo. Tinha um pendor para descobrir coisas, achar objetos. Numa época em que a parapsicologia estava mais para “coisa de espiritismo”, suas faculdades eram mal interpretadas e ele era um “sujeito esquisito”.

— Mas ele não foi pra faculdade? — perguntei.

— Não. Não terminou nem mesmo o curso científico. Num período de férias, acompanhou alguns sertanistas em viagem à região dos índios Xavantes, na selva amazônica. Nunca mais voltou à faculdade. Sumiu do mapa. Cerca de vinte anos depois, soube que ele havia voltado. Trazia consigo uma filhinha.

— Sou eu. — Solange falou. — Já faz mais de vinte anos que viemos morar aqui.

— Pois é. — O doutor continuou a narrar suas lembranças a respeito do pai de Solange. — Não tive tempo para encontrar-me com ele, pois minha clínica e as atividades no hospital da cidade não me deixavam um segundo livre. Depois, ouvi dizer que seu pai estava atendendo clientes em sua casa, praticando uma espécie de curandeirismo. No começo, nós, os médicos, não demos importância. Aliás, circularam até algumas piadas e gracejos a respeito de Felipe. Contudo, as notícias das curas praticadas por ele circulavam insistentemente e aí, começou a ser chamado de Felipe Curador.

— Ele tem um dom, um poder que nem ele mesmo sabe explicar. — Disse Solange. — Mas nunca quis fazer uso desse dom para ganhar dinheiro.

— Era um homem muito caridoso. — Falei. — Sei que não cobrava as consultas e dava remédio a quem não tinha dinheiro para comprar.

O doutor prosseguiu:

— Por uma questão de ética, procurei ignorar o meu antigo colega e amigo. Apesar disso, informações de sua prática terapêutica sempre chegavam, até com detalhes. Alguns clientes meus que foram consultar com o curador disseram-me que ele nada indagava do consulente. Apenas olhava intensamente nos olhos, enquanto segurava as mãos.

“Seu olhar é profundo e encravado em órbitas escuras, parecem dois diamantes. As mãos são frias como a de um cadáver, cruz-credo!” Disse-me o Agnaldo Lopes, um cliente idoso, que procurava cura para seus males com qualquer pessoa, em qualquer lugar. “E depois, escreve a consulta num papel de caderno.” Mostrou-me uma “receita” escrita com letras quase ilegíveis.

Solange continuava dirigindo com pressa. Mas a conversa sobre Felipe prosseguia. Eu ouvia atentamente.

— As notícias das curas de papai se espalharam. — Disse Solange. — Não demorou muito, nossa casa ficou pequena pra atender tanta gente. As filas se estendiam pela calçada e pela praça fronteiriça. Papai nada cobrava pela consulta. Mas recebia donativos das pessoas que curava.

Sem querer, fiquei sabendo como a prosperidade chegou para Felipe.

— Ele comprou uma casa maior e, alguns anos depois, uma fazendinha na serra da Canastra.

— E por que ele parou de atender as pessoas? — perguntei?

— Ele dizia que seu tempo se esgotara. Que a missão estava cumprida. — Solange prestava atenção às curvas do caminho, mas continuava falando de seu pai. — Então, fechou o consultório e se retirou para a fazendinha.

Dei graças a Deus por chegar inteira à pequena fazenda de Felipe. Após a porteira da entrada, a estrada era ladeada por renques de álamos-vela, árvore de belíssimo porte, esguia e altaneira, balançando-se suavemente à brisa da manhã. Em vez de se dirigir à casa principal, Solange guiou o carro para o topo da colina, onde uma casa modesta, de madeira, entrevia-se entre os álamos.

— Papai nunca morou na casa-grande. Mandou construir esta casinha aqui no topo do morro. É o local mais elevado de toda a região. Mora aí, sozinho, com seus poucos livros e cultivando a horta. Nunca quis receber a visita de ninguém. E só posso entrar na cabana quando ele coloca a placa no alpendre.

— Mas, e a comida, a limpeza da casa, as roupas? — O doutor perguntou.

— É um mistério — Explicou Solange. — Parece que uma mulher vem limpar a casa e ajudá-lo. Ele diz que é Maria Xanga. Eu nunca vi tal mulher. Mas a casa está sempre limpa, a roupa também. Sempre que entro na casa, está tudo bem arrumado. Zeca Frejó, que trabalha há muitos anos na fazenda, diz que já viu e que é a tal da Maria Xanga. Só que a Maria Xanga já morreu faz muitos anos.

Finalmente, chegamos à entrada da casinha. Situada no topo do morro, estava totalmente cercada árvores, que formavam um pequeno bosque e tornavam o sítio sombreado. Encostada no chão do alpendre, estava a placa: uma tábua de madeira, quadrada, de aproximadamente um metro de lado, com as letras grandes pintadas com tinta preta: ENTRE.

Entramos. Fiquei surpresa com o que vi. Sentado numa poltrona, meio deitado, recebendo a claridade da janela, estava Felipe. Olhos empapuçados. Ralos cabelos brancos compridos chegavam aos ombros. A barba, também muito branca, descia até o peito. Rugas na testa, na face e pescoço. A última vez que tinha visto ele, era ainda viçoso, a face quase gorda. Os braços e mãos mostravam apenas a pele sobre ossos. Pelas roupas frouxas, adivinhei a sua magreza.

Solange adiantou-se e abraçou o pai, dizendo:

— Papai! O senhor está bem? Por que não ficou na cama?

Esboçando um sorriso, ele olhou primeiro para a filha e depois para mim. Estava muito acabado. Devia ser da minha idade, uns sessenta anos, mas sua aparência era de uns vinte anos mais velho.

Mas os olhos! Quando percebi o lampejar daqueles dois brilhantes, notei algo sobrenatural. A força daquele olhar ao mesmo tempo abrandava todas as rugas e realçava o sorriso tranqüilo, me impressionaram.

— Dona Beatriz! — Falou, com voz trêmula. — Há quanto tempo.

Estendeu as mãos para mim. Ofereci-lhe as minhas, que apertou com vigor inesperado. Depois, dirigindo-se ao médico:

— Então, meu caro! — Ele falou, a voz firme e clara. — Como é que é? Você está bem?

— Eu é que lhe pergunto: como é que está passando? Solange me disse que você estava precisando de ajuda.

— Que nada. Foi apenas um sufoco. Passou já faz tempo.

O médico abriu a valise e retirou o estetoscópio.

— Vamos escutar seu coração, verificar a respiração...

Felipe interrompeu:

— Deixa disso, amigo. Estou bem. Sente-se aí, vamos conversar.

E dirigindo-se à filha:

— Solange, traz aquele chá que você fez há pouco. E no armário tem uns bolinhos de mandioca que fiz ontem. Traz aqui, para dona Beatriz e para o doutor.

Nem bem a filha desapareceu em direção à cozinha. Felipe começou o que considero a sua confissão final. Descansando a mão esquerda no meu antebraço e a mão direita na mão do médico, foi falando em voz mansa porém clara e tranqüila.

— Na verdade, estou de partida. Já vejo o portal que vou atravessar para outra dimensão. Há muitos anos que estou vivendo horas extras neste mundo. Mas tudo tem seu tempo, não adianta tentar mexer neste relógio interno que nos norteia. Não adianta tentar protelar o que tem hora marcada para acontecer.

— Sua filha está preocupada com você. Encontrou-o sem ar, hoje de madrugada. — Falou o doutor Nelson.

— Solange se preocupa à toa. Quando chegar a hora, que está próxima, vou sem alarde, não vou dar trabalho pra ninguém.

— Você pelo menos poderia ir para a casa-grande. Solange cuidaria melhor de você. Eu mesmo quero visitá-lo periodicamente. — Prosseguiu o médico.

— Pra quê? Vocês, médicos, interferem muito nas vidas das pessoas. Pensam que estão ajudando, dando-lhes mais algum tempo de vida. Cortam, costuram, trocam órgãos...Isto tudo está errado, cada pessoa tem sua sina gravada na mente. Somos todos predestinados.

— Você é curador, Felipe. Está renegando a própria faculdade de curar? — Perguntou o médico.

— Nunca curei ninguém. A verdadeira cura está no interior de cada um. Quem procura um médico, um curador, uma benzedeira, é porque quer ser curado. Nesta procura, o processo de cura já está começado. Os terapeutas devem apenas ajudar o paciente. Jamais intervir na natureza humana. O indivíduo é seu próprio curador – ou seu próprio carrasco.

— Nossa missão é...— O doutor tentou intervir.

— Ah! O que é ensinado nas escolas, nas faculdades! Tudo balela. Nenhuma cura se faz sem amor. Vocês pensam que têm sucesso nesta ou naquela cirurgia, num tratamento ou num transplante. Certo, por algum tempo, enganam o corpo do paciente, mas logo chegam outros problemas, que se sobrepõem ao inicial, e a cura é aparente.

— Por que você deixou de atender aos pacientes? — Perguntei.

— Porque meu tempo de ajuda acabou, dona Beatriz. Tudo tem seu tempo certo, sabia? Agora, meu tempo neste plano terrestre também já está no fim.

Mudando de posição na poltrona, mudou o tom da voz.

— Doutor, sua vinda aqui não é ocasional, como pode parecer. Pensei em destruir meus cadernos, onde registrei boa parte de minha vida, principalmente quando convivi com os índios. Mas tem muita informação útil para quem quiser aprender. Você acha que ainda tem alguma coisa para aprender?

— Sim, todo dia temos que aprender alguma coisa. — Respondeu o médico.

Solange chegou com uma bandeja com xícaras, bule e um prato com bolinhos, que colocou sobre a mesa.

— Solange, minha filha, você sabe do valor que atribuo aos meus escritos. Estou passando todos para o nosso amigo, o doutor Nelson, aqui do meu lado. Sei que ele fará bom uso disso.

Assim dizendo, apanhou um caderno de capa dura que estava na mesinha ao seu lado. Aparentava ter sido muito manuseado. Voltou-se para nós. Seus olhos brilhantes nos fixavam como faíscas brancas. Dois diamantes na órbita funda. Entregou o volume ao médico.

— Sim, você fará bom uso disto tudo.

Quando o médico pegou o caderno, sentiu a sua mão afrouxar e descambar. Solange pressentiu algo e gritou.

— Pai! Papai! Não vá!

Olhei para seus olhos. Os diamantes se apagaram.

ANTÔNIO GOBBO –

BELO HORIZONTE, 23 DE ABRIL DE 2008

CONTO # 490 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 04/11/2014
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