48-PARA BU SABEVE- História de meu pai

Pedrinho havia sido um bom aluno no curso primário. Tinha boa caligrafia, lia com facilidade e desenhava como nenhum outro colega em todo o grupo escolar. Dona Sinhaninha, a professora que lhe ensinara escrever e ler, tinha dele maior orgulho.

— Ele tem de continuar estudando. É inteligente e muito sensível.

Mas era uma voz isolada. O pai e a mãe não prestaram atenção nas palavras da mestra. Eram imigrantes italianos que mal entendiam a língua do país que os recebera.O pai era calado, falava o estritamente necessário, no idioma da região de Udine, sua terra natal.

Era o caçula da irmandade. Dois irmãos, Isidoro e Eduardo, e duas irmãs, Beatriz e Eulália viviam azucrinando o irmão menor. No grupo escolar, afeiçoara-se a Josué, seu único amigo com quem gostava de brincar e estudar. Josué era mais desenvolvido no porte e desembaraçado. Ajudava o padre Isidoro na celebração da missa. Uma vez, chamou Pedrinho para também ser coroinha.

— Vem. Eu lhe ensino as respostas das orações e a levar e trazer as jarrinhas de água e vinho durante a missa.

Quando conversou com a mãe, ela cortou logo a conversa:

— Você não tem roupa nem botina para aparecer na igreja.

— A gente usa batina de coroinha.

— Não.

Assim, sem mais explicação, lhe foi cortada a primeira manifestação de vontade própria.

Terminado o grupo, com onze anos, passou a trabalhar na olaria do pai. Isidoro e Eduardo já trabalhavam lá, fazendo tarefas compatíveis com a idade: levavam os carrinhos com tijolos para o forno, limpavam o chão onde os tijolos feitos no dia eram colocados para secar, ou ajudavam carregar a carroça com barro.

A olaria distava meia légua (cerca de três quilômetros) da casa onde moravam. O pai e os filhos tinham de levantar antes do sol nascer, tomar o café enquanto a mãe preparava a comida do almoço para levarem. Trabalhavam o dia inteiro e voltam pelas quatro horas da tarde. Todos exaustos.

Pedrinho e os irmãos nada recebiam pelo trabalho. Tinham assegurados a comida, as roupas e, eventualmente, um novo par de botinas. Nada mais.

.

Em casa quase não conversavam. Quando surgia alguma dúvida e perguntavam ao pai o que era isso ou aquilo, o sisudo respondia com três palavras:

— Para bu sabeve.

Nunca perguntaram ao pai (ou à mãe) o que significava aquela expressão, e o assunto morria então.

Aos domingos, ia à missa com o pai, enquanto a mãe permanecia em casa, preparando o almoço especial, a macarronada, servida apenas com o pão. O pai bebia um copo de vinho. Calado

Pedrinho encontrava-se todas as semanas com Josué depois da missa de domingo e os dois ficavam de conversa defronte à igreja. Eram os únicos momentos de satisfação e liberdade que Pedrinho realmente usufruía.

Num domingo, os dois toparam com dona Sinhaninha, a antiga professora.

— Josué! Pedrinho! Que alegria em vê-los!

E foi por aí, perguntando de tudo sobre os dois ex-alunos.

— Parece que foi ontem que vocês saíram do grupo e já se passaram quatro anos. Vocês já estão rapazinhos.

Ao se despedirem, ela desejou encontrar de novo com eles, no próximo domingo.

O que realmente aconteceu. Então, começou a se inteirar da vida dos garotos.

— Estou no ginásio. No terceiro ano. = Josué era desinibido e falava alto. = Vou ser advogado, como papai.

— E você, Pedrinho? — Com um sorriso animador, queria saber de tudo.

Pedrinho ficou com vergonha mas não mentiu.

— Trabalho na olaria do papai.

— Mas você desenha tão bem. Não vai estudar no ginásio?

— Não posso. Papai não tem dinheiro para pagar.

— Que pena! Está aprendendo algum ofício?

— Não dá tempo. Passo o dia inteiro na olaria. Quando chego em casa estou cansado demais.

— Ora! Mas isto não está certo, não. Vou lhe arranjar um jeito de você aprender alguma coisa, uma profissão, um ofício. Vou ver o que posso lhe arranjar.

A conversa daquela manhã teve prosseguimento. Entretanto, durante a semana Pedrinho ficou pensando.

Eduardo quer ir embora, mas papai não deixa. Isidoro briga todo dia com papai e com os batedores de tijolos. Se eu arrumar um jeito de trabalhar noutro lugar...

Nada falou em casa das conversas que tinha com dona Sinhaninha. Até o dia em que ela apareceu com uma proposta.

— Olha, arranjei para você ir trabalhar com Alfredo Elias. Ele é marceneiro e entalhador e está precisando de um ajudante.

— Mas... eu não sei fazer nada.

— Ora, você aprende. Habilidoso como é, logo você estará fazendo belos móveis.

Quando falou sobre a proposta em casa, houve a reação de sempre.

— Não pode. — disse o pai.

— Não posso! Não posso... porque?

E a mãe:

— Ouça seu pai. Ele tá com razão.

— Mas, porque não posso trabalhar fora? Me dê uma razão.

— Tem de ajudar na olaria.

Sentiu uma vontade de sair correndo, abandonar tudo. Levantou a voz com o pai.

— Isto não é explicação. Quero saber porque não posso...

— Para bu sabeve — interrompeu o pai.

E assim colocou um ponto final na conversa.

Domingo de manhã. Após a missa, as pessoas se encontravam na praça. Dona Sinhaninha procurou, olhando por cima dos grupos, por Pedrinho e Josué. Não os viu e já se dispunha a ir embora, quando avistou os dois, no outro lado da rua.

— Meninos! Estou aqui! — Acenou para eles que, ao vê-la, se aproximaram.

— Então? Como foi a semana? Passaram bem?

Pedrinho estava encabulado. Calado. Josué explicou:

— Ele falou com o pai, pedindo para trabalhar fora.

— Então? — Ela se mostrava animada.

— Não posso. Meu pai não me deixa.

— Ora, ora. Mas isto é...é...uma tirania! Uma escravidão. — A mulher não escondeu a raiva.

— Eu já falei pra ele fugir. — Josué falou em tom de brincadeira.

— Josué! Isto é lá coisa de se aconselhar? — A raiva da professora se transformou em surpresa.

— Uai. Fugir, sim. Ou então, ir pro seminário. =O colega continuava na brincadeira.

— Nunca pensei em ser padre. Num quero não.

— Falei por falar. Estava brincando. Mas garanto que se você disser pra sua mãe que quer ir pro seminário, ela vai até gostar.

— Josué, pára com isso. Tenho de pensar em outra maneira do Pedrinho sair da olaria.

E o assunto ficou neste pé. Ou melhor, inconcluso.

Pedrinho, todavia, pensava cada vez mais numa maneira de sair da olaria.

Se eu arrumasse um emprego no comércio. Mas não sei fazer nada, nem atender um freguês. Agora, ir pro seminário...estudar num seminário...pelo menos, seria um jeito de sair de casa.

Tomou uma decisão. Na noite de quinta-feira, falou com o pai e a mãe, depois do jantar.

— Vou ser padre.

— Ma qua! Que stória é questa?

— Quero ir pro seminário.

— Não pode. — falou o pai.

— Papa! É bom ter um padre na família. — exclamou a mãe.

O pai não retrucou. De repente, alguma coisa nova entrou-lhe pelos ouvidos.

— Sim, papa, rezo por vocês em todas as missas.

O que eles conversaram no quarto Pedrinho não soube. Mas de manhã, a mãe lhe disse:

— Hoje você não vai para a olaria. Vamos assistir a missa das sete. Depois, vou falar com padre Isidoro.

Pedrinho tremeu. E agora? O padre vai ver que não tenho vocação...vai até me passar um sermão.

Assistiu a missa sem prestar atenção. Quando o padre se virou e disse as últimas palavras — Ite, missa est.— teve vontade de sair correndo. Mas agüentou firme.

Qual não foi sua surpresa quando, após a mãe contar sobre a vontade do filho, o padre abriu num grande sorriso e abraçou-o num abraço apertado.

— Meu filho! Que alegria em saber que você quer ser padre. Sim, claro, vamos arranjar tudo para você ir pro seminário.

— Mas, não tem um teste, uma prova...? — Pedrinho perguntou.

— Que prova? Não devemos tentar o Senhor, duvidando da vocação que ele coloca no coração de um jovem piedoso como você.

Foi assim que Pedrinho trocou a dura vida sem perspectiva na olaria do pai, pela de seminarista, apesar de nunca ter passado por sua cabeça se tornar um padre.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 10 de maio de 2008

Conto # 489 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 03/11/2014
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