DIA DE FINADOS

Seis horas da manhã. Dia de Finados. Mauro acorda triste, melancólico. É sempre assim, todo ano. Com saudade de Joana, a sua esposa, já desencarnada há dez anos. As flores, já compradas no dia anterior, estão na jarra com água, à espera dele pegá-las e seguir em direção do cemitério, pra colocá-las sobre o túmulo da saudosa esposa. Nutrindo um gosto por fotografia, espalhou por quase todos os cômodos da casa, retratos de Joana, para que pudesse vê-la, em variadas poses, andando pelos recintos da casa, com passos lentos, correndo as vistas pelas paredes, detendo-as demoradamente, quando se deparava com a foto de quem foi sua companheira por quase cinquenta anos; e, nesses momentos angustiantes, as lágrimas rolavam dos seus olhos sem parar, lhe encharcando as faces tão marcadas pela idade já avançada e pelo sentimento de pesar, que tanto lhe pesava na alma. Agia assim, ainda tão apegado a ela, mesmo em ausência carnal, porque a amava muito e não queria esquecê-la jamais. Casou-se de novo, não oficialmente, depois de dois anos de viuvez, com uma senhora distinta e também viúva, e com ela convive há oito anos, sem esquecer, entretanto, a mulher que escolheu pra casar, mas que há dez anos o deixara, pois a morte a levou subitamente. A sua atual mulher, na mesma situação de viuvez, aceitou o convite pra morar com ele; afinal, ambos com os filhos bem criados e bem educados, todos já seguindo as suas próprias vidas, nada mais justo, portanto, por solidão e carência afetiva, que pudessem unir o útil ao agradável. Se ela sentia falta do marido desencarnado, não demonstrava, talvez por ser mais compreensiva, mais conformada, além de não querer magoá-lo. Já ele, mais incompreensivo, mais inconformado, não disfarçava a falta que sentia da esposa desencarnada. Por várias vezes, durante esses anos, ela pensou em desistir dessa união, que para ela, no início, parecia boa, agradável, conveniente. Não pelo aspecto financeiro, já que ele era bem aposentado, proprietário de alguns imóveis na cidade. E ela, da mesma forma, também já era aposentada, além de ter também os seus imóveis. Ambos tinham as suas devidas condições econômicas. Mas pelos aspectos da carência afetiva, da doação sentimental, do companheirismo. Por isso que ela pensava em desistir, porém depois repensava, refletia melhor, e acabava por achar que dava pra ir levando, aturando aquela sua forma exagerada de apego a alguém que não mais estava ali carnalmente; e que ele podia muito bem, nos momentos que se lembrasse dela, orar, pedir em prece a Deus pra que tomasse conta de sua alma, tendo-a num bom lugar, que Deus confortasse o seu espírito, e que ele se lembrava dela sentindo todo tempo a sua falta, contudo, foi Deus que assim quis, que ela fosse antes dele, que decerto, faria um esforço pra se lembrar dela com alegria, e não com tristeza. Muitas vezes, ela o aconselhava pra agir desse jeito, porque ela também sentia falta do seu companheiro, mas, ao contrário dele, se conformava mais, compreendia mais, visto que, sabia que não podia mais tê-lo em carne e osso junto dela. E, mediante as suas orações, as suas preces, pedia sempre pra Deus confortar, abençoar, proteger e iluminar a sua alma, agora na eternidade. Nesse caso, como os dois, marido dela e esposa dele, já estavam juntos do Senhor na vida eterna, o mais sensato era que, quem estivesse aqui desfrutando da vida carnal, ainda que temporariamente, já que todos, a qualquer momento, vivenciam essa fatal realidade, pudesse aproveitar os bons e confortáveis momentos de união afetiva, pois a vida carnal é breve; na mesma hora que se está aqui, não está mais. E foi se suportando, se aconselhando, se resignando, chorando juntos pelas mesmas emoções, pelos mesmos sentimentos, que Mauro e Antônia, supriam as ausências dos cônjuges desencarnados. Ele, em respeito a ela, até diminuiu os retratos da saudosa esposa, substituindo-os pelos da atual mulher. Ela, claro, ficou feliz com essa atitude renovada dele, demonstrando-lhe amor, carinho, afeto, atenção. Sem crê na vida após a morte, e duvidando da existência de Deus, pois achava que a vida era só aquela que vivia como ser carnal, sem jamais imaginar que dentro do seu corpo físico, residia interinamente um ser espiritual distinto que sobrevivia à morte física, Mauro vivenciou naquele Dia de Finados, uma experiência que mudou a sua forma de pensar. Antônia, nos primeiros anos, até que visitava o túmulo do saudoso marido. Mas depois, passou a fazer as suas orações em casa mesmo. Já Mauro, todos os anos, fazia questão de visitar o túmulo da saudosa mulher, sempre levando lindas e aromáticas flores, quando então, em silêncio, com lágrimas nos olhos, as mãos trêmulas, o coração acelerado de tanta emoção, as depositava sobre o túmulo. Como sempre, o cemitério estava cheio. Mauro chegou, andou um pouco e logo já estava diante do túmulo que visitava todos os anos. Ao fazer a sua ação habitual, sentiu fortes arrepios por todo corpo. Nunca havia sentido aquilo. O que seria? Algum aviso, algum presságio? Não. Ele era incrédulo. Ficou ali, pensativo, reflexivo, e os arrepios como lhe queimando o corpo. Ele era hipertenso, mas muito precavido, talvez até com medo de morrer, cuidava da saúde com muito zelo, dedicação, apesar de ter uma saúde de ferro; era muito saudável, tomava os remédios que o médico lhe prescrevia pontualmente. Na verdade, só a hipertensão o incomodava, mas era controlada com os medicamentos. Estava ali, diante do túmulo, talvez visualizando na consciência, a imagem da amada desencarnada. De súbito, os arrepios diminuíram e uma tontura foi se apoderando dele aos poucos, as vistas se escureceram e ele caiu desmaiado à beira do túmulo. As pessoas próximas vieram socorrê-lo, tomaram-lhe o pulso, a fronte, e alguém disse: - eu acho que foi emoção, pessoal; ele está apenas desmaiado; tragam um pouco de água fresca, por favor, se afastem mais um pouco dele, está fazendo muito calor... Do outro lado da vida, a alma de Mauro, fora do corpo físico, revestida por seu perispírito, ouvia e via aquelas pessoas ali, em volta do seu corpo físico, deitado, imóvel, e ele não entendia porque estava ali de pé com um corpo igual. Foi então que uma linda senhora de cabelos grisalhos, vestida numa túnica branca, apareceu por detrás dele e o chamou pelo nome: - Olá, Mauro, como está? Ouvindo aquela voz tão conhecida dele, virou-se e reconheceu a esposa. Admirado, lhe indagou: - Joana! É você mesma, minha adorada esposa? – Sim, Mauro, sou eu mesma. – Mas então, quer dizer que você está viva, que você não morreu? – Não, meu adorado esposo, eu não morri, quem morreu foi o meu corpo físico que está aí sepultado. Mauro olhava pra ela sem entender o significado de tudo aquilo. – Mas então você é quem? – Eu sou a alma ou espírito que estava alojada no corpo físico com quem você conviveu em minha vida carnal. Quando a carne morre, a alma sobrevive à morte e retorna com o seu corpo espiritual que lhe é inseparável, à pátria espiritual. Esse corpo aqui, tanto quanto o seu, são os nossos corpos espirituais eternos. É através desse corpo que a alma continua a sua vida eterna, depois que deixa o corpo carnal que antes habitou. – Mauro continuava perplexo diante de uma realidade tão inusitada pra ele. – Então a alma tem dois corpos? Um morre e outro vive? – Sim. – Quer dizer que também morri pra ficar junto com você? – Não. Você ainda não morreu. O seu corpo físico ainda não morreu, está só desmaiado. – Mas eu quero ficar com você, sinto tanta saudade, você não imagina quanta saudade eu sinto de você, Joana, todos esses anos, sentindo a sua falta, e agora que encontro você tão viva diante de mim, não posso ficar com você, eu não entendo... Joana, gentilmente tomou-lhe as mãos, acariciou-as, e, olhando pra ele amavelmente, lhe disse: - Mauro, meu querido, em todos esses anos de minha ausência carnal, eu venho acompanhando o seu sofrimento à distância, sem deixar de te enviar boas energias pra você e pra sua atual esposa, que também é viúva, cujo esposo dela, também faz a mesma coisa com ela, só que ela é mais compreensiva, mais conformada do que você. E só agora, aproveitando que você veio visitar o túmulo onde o meu corpo físico está sepultado, é que me foi permitido por Deus, através da espiritualidade, chegar perto de você, pra te esclarecer sobre o que você tem dúvidas com relação a Deus, à morte, à vida... A morte, Mauro, é apenas carnal, e a alma, depois que deixa a carne morta, retorna à pátria espiritual, e pode reencarnar tantas e quantas vezes forem necessárias em novos corpos físicos, visando aprimoramento moral no mundo corporal. Eu só vim aqui pra te rever de perto, te esclarecer, te dar um abraço, um beijo, e lhe dizer que por obra e graça de Deus, tudo existe e a vida continua... Não posso mais ficar com você, tenho que ir, o que você tem que fazer agora é voltar pro seu corpo físico, que já está quase voltando a si; fica com Deus, meu querido, você ainda tem que viver mais algum tempo naquele corpo físico que está ali; não se preocupe mais comigo; estou viva, saudável, e bem amparada na colônia espiritual onde moro; cuide bem de sua atual mulher, ela é bondosa, cuida bem de você, merece ter todo o teu amor, carinho e atenção. Luz, paz, e gratidão. Até outro dia. Fica com Deus, sempre. Quando Mauro abriu de novo os olhos carnais, as pessoas ainda estavam ao seu redor, porém um pouco mais afastadas. Alguém se aproximou dele e lhe indagou: - E então, está melhor agora? – Sim. Estou bem melhor. Aliás, gostaria de dizer pra vocês que tive um encontro com minha Joana aqui, porém, no plano espiritual. Ela está linda, saudável e vivíssima. Queria até ficar com ela, mas me disse que ainda não era chegada a hora. Esclareceu-me umas dúvidas que tinha acerca de Deus, da morte e da vida. A partir de agora, pessoal, eu creio sim, em Deus, a morte é só física, e Deus nos reservou uma vida que não acaba nunca, a vida do nosso espírito. Quem me esclareceu isso, foi a minha adorada esposa, vivíssima na pátria espiritual. Todos os presentes se olharam, e fizeram uma prece agradecendo a Deus pelo bem-estar espiritual das almas encarnadas, e, em especial, das almas desencarnadas. Afinal, era o Dia de Finados.

Adilson Fontoura
Enviado por Adilson Fontoura em 02/11/2014
Reeditado em 27/10/2017
Código do texto: T5020272
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