480-A PANACÉIA UNIVERSAL-O Medicamento final
Não se tem notícia de uma geração como a da família Galisteu. A tradição de todos os descendentes masculinos de seguirem a profissão do pai contava com alguns séculos na genealogia familiar. Assim, era com orgulho sem conta que o farmacêutico Avicena Hermógenes Galisteu relatava para seu público as histórias do pai, do avô, do bisavô e de demais antepassados, todos dedicados à ciência da farmacologia.
E prosseguia, secretamente, com a experiência igualmente tradicional e antiga na família: a procura do remédio que curasse, de uma só vez e para sempre, qualquer doença — a Panacéia Universal.
A atual Farmácia Galisteu — que já fora botica ao tempo do pai de Avicena — era o ponto de reunião dos expoentes e intelectuais da pequena cidade. Os debates chegavam a ser acirrados entre o professor Alencar, diretor do Grupo Escolar, o pároco Monsenhor Ranzine, o doutor Argemiro, o único médico da cidade, o Capitão Romano, delegado de polícia e poeta, Mestre Apolinário, presidente da Loja Maçônica Luz e Paz, e Hermann Vandeberg, alemão entendido em mecânica e dono do Cine Recreação. Este andava meio afastado do grupo, pois defendia idéias ultra-direitistas e era adepto de Hitler, o que, na época — os anos finais da Segunda Guerra Mundial — não era recomendável propalar.
Os temas das conversas eram variados, mas quando se reuniam o monsenhor, o doutor e o farmacêutico, invariavelmente o assunto era encaminhado, com astúcia, por Avicena, para a origem da vida, o sofrimento humano causado pelas doenças e as dores da humanidade.
— Penso num dia em que todas as mazelas do mundo serão eliminadas. Os homens se entenderão, os remédios curarão todas as doenças e a paz, a bonança se estenderão sobre a terra. — O otimismo de Avicena era notável e ele não escondia. — Basta que haja alimento para todos, conhecimento das causas das doenças e o uso simples das plantas e produtos na farmacopéia, para que a humanidade seja tão ou mais feliz que Adão e Eva foram no Paraíso.
— A dor e o sofrimento são condições inerentes da condição humana. — Monsenhor replicava na hora, principalmente quando Avicena colocava elementos da religião em discussão. — A expulsão de Adão e Eva do Paraíso colocou um estigma na humanidade: a dor, o sofrimentos, os trabalhos sem cessar. Nem mesmo Jesus prometeu a liberação de tais fardos, senão a pregação do Amor como superação de nossas dificuldades.
— A ciência sempre estará em busca de algo mais. Vejam quanto tem avançado nos últimos anos, principalmente em função da...guerra! — o Doutor Argemiro mostrava-se sempre paradoxal e maniqueísta em suas exposições e conclusões. — A civilização só progride em função das dificuldades que enfrenta. E o ser humano, como coletivo, é tão imbecil que aposta na guerra, na conquista, no exercício do poder, para solucionar as questões. Uma sociedade sadia, bem alimentada, gozando de paz e amor sem limites, será uma sociedade que perecerá rapidamente.
E as discussões continuavam, sem conclusões. Como continuavam as experiências de Avicena na procura da panacéia universal. As tentativas de encontrar tal poção, fortificante ou remédio eram o desiderato da família. Na linha genealógica, que vinha desde os tempos da dominação árabe na península ibérica, contavam-se magos, alquimistas, curandeiros e, nos tempos mais recentes, boticários e farmacêuticos. Atualmente, a ponta da pesquisa estava nas mãos de Avicena, que havia jurado ao pai o prosseguimento das experiências. Juramento, aliás, que era feito a cada geração, de filho a pai, segundo o qual os resultados só seriam divulgados no dia em que a fórmula definitiva fosse estabelecida e a poção de efeito comprovado.
— A panacéia universal será do conhecimento geral, divulgada de graça e nunca vendida. — Avicena lembra-se bem da recomendação do pai no seu leito de morte.
:: :: :: ::
Joaquim das Dores tinha apelido ambíguo e apropriado: vivia de favor com Maria das Dores e, ao mesmo tempo, era um poço de sofrimento e de queixumes. Em função disso, nada fazia, era um eterno preguiçoso, cujas dores (reais e inventadas) constituíam pretexto para o abandono na rede, na cama, nas cadeiras ou refestelado sob a enorme jaqueira no quintal.
— Home, vai consultar o doutor Argemiro. Ou vai na farmácia comprar um remédio.
— Carece não, Das Dores. Essas coisas de médico e farmacêutico ajudam mais é matar o cidadão. Se remédio curasse, num tinha doente no mundo.
— Então, vou fazer um chá de erva-capim pra você tomar.
— Qual o quê. Tou com vontade não.
E lá ficava estendido, curtindo a preguiça enorme e as dores imaginárias.
:: :: :: ::
As experiências de Avicena chegaram a um ponto crucial: experimentar a poção para testar a eficiência. O produto apresentava-se sob uma forma leitosa, de fraco odor agradável. Quando ao gosto, seria impossível afirmar, pois ninguém havia ainda tomado para dizer se doce, amargo ou azedo.
O problema do teste em animais não foi difícil. Havia pela casa do farmacêutico dois gatos, um cachorrinho e no quintal, no galinheiro, diversas galinhas, um galo, um casal de patos e até uma galinha d’angola. O galo já estava velho, meio capenga, não tinha mais vitalidade para correr atrás das frangas e galinhas e era candidato sério à panela. Mas antes que a mulher sacrificasse o ex-rei do galinheiro, Avicena, muito secretamente, enfiou-lhe na goela uma gota, apenas uma gota, que é pra não matar o coitado, do líquido esbranquiçado.
O efeito foi surpreendente.
— Cena, corre aqui. Venha ver o galo. Parece que endoideceu. Tá que nem um maluco, correndo e atrás das galinhas. Desse jeito, vai morrer.
À vista do espetáculo, Avicena sorriu e acalmou a mulher:
— Não, mulher, ele não vai morrer não. Ontem lhe dei um fortificante que recebi da de um laboratório na capital. Queria ver se era bom mesmo. E é.
O galo, passado o primeiro momento, isto é, o primeiro dia, arrefeceu seu ímpeto, mas mostrava-se saudável, as penas tornaram-se lustrosas, a crista caída ficou em riste e voltou a ser o rei do galinheiro, se é que vocês me entendem.
Ante reação tão positiva, o farmacêutico pensou testar a poção em um homem ou mulher. Não teve dois segundos de dúvida. O Joaquim das Dores! Mas como vou fazer com que ele beba a poção, ele que jamais toma remédio?
Com muita discrição, procurou Maria das Dores com um minúsculo frasco do liquido leitoso.
— Dona Das Dores, recebi este fortificante de S. Paulo e tenho certeza que será muito bom pro Joaquim. É só pingar uma gotinha no café ou no leite, não tem gosto nem cheiro.
— Será, seu Cena?
— Pode experimentar. Mas é só uma gotinha de cada vez. Nem precisa falar pro Joaquim. Vamos ver se ele sara dessas dores.
— Deus lhe ouça, Seu Cena. Vou fazer assim como o senhor tá mandando. E depois lhe digo.
:: :: :: ::
Na manhã seguinte,os freqüentadores da farmácia estão numa discussão acirrada .
— Voltamos ao mesmo ponto. Quem tiver a felicidade de encontrar um remédio ou uma erva que cure todas as dores do mundo, vai causar mas é uma desgraça. — O Doutor Argemiro defendia seu ponto de vista ambíguo. — Os primeiros a sofrerem as conseqüências serão os médicos. Ficaremos completamente inúteis.
— E o próximo a perder a razão de existir, como farmacêutico, será o senhor, seu Avicena. Sem doentes, não precisarão de remédios. O senhor poderá fechar a farmácia. — O monsenhor falou, em tom de gozação.
— Mas o senhor também perderá o emprego, monsenhor. — Mestre Apolinário se deliciava com o rumo da conversa. — Em um mundo sem doença, sem dores, todos serão felizes. E então, “Adeus, Religião”.
— Ora.. — Ia responder o monsenhor quando Das Dores entrou na farmácia.
Ao vê-la, Avicena, antes que ela falasse qualquer coisa, levou-a para o laboratório, nos fundos.
— E então? Como está o ...?
— Ai, seu Cena, nem lhe conto. O home virou outro.
— Como assim?
— Só o senhor vendo.Nem bem acabou de tomar o remédio, começou a se mexer na rede, sem sossego. Levantou e foi por quintal. Lá pegou uma enxada e começou a capinar, limpou o quintal inteirinho, recolheu o mato, fez uns canteiros. De uma cerca que estava caída nos fundos ele tirou as taquaras quebradas e colocou tudo em pé, certinho. Só parou quando escureceu. E ainda assim, dentro de casa, limpou as cadeiras, a mesas. E num falou um “ai” o dia inteiro.
— E hoje? A senhora deu de novo o remédio.
— Dei. Foi na xícara de café dele. Então, ele saiu e disse que ia procurar trabalho com o Major Quintino, que está precisando de gente pra colher café. Nem quis esperar eu fazer a comida pra ele levar pra roça.
:: :: :: ::
Naquela noite, insone, a cabeça girando de um lado para o outro no travesseiro, Avicena pensou nas palavras do médico e do monsenhor, na conversa interrompida pela manhã.
O Doutor tem razão e Apolinário também. Num mundo de felicidade, médico, padre e farmacêutico não terão utilidade nenhuma. Ai, meu Deus, minha descoberta será minha ruína!
Durante uma semana não dormiu direito. A cada noite, discutia consigo mesmo.
Mas, e o juramento que fiz para meu pai? E o trabalho de todos meus antepassados?
Não se atrevia em discutir abertamente seus problemas, pois teria de revelar o segredo de séculos.
Na manhã de sexta-feira, após a semana inteira de noites mal dormidas e o dilema se agravando, tomou uma decisão. Ausente da reunião de amigos, permaneceu no laboratório, enfiando num baú de madeira todas os livros, cadernos, anotações e registros sobre as experiências secretas. Derramou o conteúdo frasco leitoso na pia e jogou o vidro no lixo. No laboratório não ficou qualquer vestígio das experiências que vinham sendo feitas pela família durante séculos. Fechou o baú com chave.
:: :: :: ::
Na madrugada fria, quando o relógio da torre da igreja batia três horas, um vulto encapuzado deixou a farmácia furtivamente. Sob o manto negro, carregava algo como uma caixa ou mala quadrada. Escondendo atrás das arvores, chegou à beira da calçada que seguia ao longo da margem do rio de leito fundo e pedregoso.
Num gesto decidido e rápido, abriu a capa e, num ato que significava o fim da panacéia universal, lançou a caixa nas águas profundas e revoltas.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 28 de fevereiro de 2008
Conto # 482 da série Milistórias