A Luz Misteriosa

Percorridos os quase 100 quilômetros de estrada, vislumbramos a praia do Morro Branco, às vésperas do reveillon. Minha família há muito ansiava por um bom descanso após um ano frenético de intensas atividades. De minha parte, empenhei-me nos estudos, mergulhei nas pesquisas e consegui um invejável rendimento escolar. Todos estávamos, portanto, necessitando de uma recarga nas energias.

Tudo ali servia de alento para o espírito, o contato com a natureza tem dessas coisas. Na verdade, a paisagem era revigorante: as palmeiras açuladas pelos ventos, o farol resplandecendo no topo do morro, longinquamente, e o casario disperso em suas vertentes; jangadas que se estendiam por toda a orla, jazendo nas areias após a longa jornada noturna.

Adorava encher meus pulmões de ares marinhos na companhia de outros garotos que ali encontrava regularmente, moradores habituais da região. Nossas aventuras eram vivenciadas naquelas dunas esbranquiçadas, com suas areias ao longe reluzindo em montículos às investidas do sol. Cedinho brincávamos de caçadores, mocinho e bandidos; meados da tarde soltávamos pipas, com seus rabichos espalhafatosos, saracoteando ao sabor dos ventos. A brisa noturna nos encontrava esparramados em seu chão arenoso, a contar histórias de arrepiar os cabelos. Nas pausas entre uma e outra narrativa fitávamos o espetáculo da noite - a ciranda das estrelas cintilando ao redor de uma lua magistral – buscando, assim, aliviar as tensões provocadas pelos fantasmas que povoavam o nosso imaginário. Mal nos recompúnhamos, outro ataque de nervos se fazia presente quando um ou outro moleque furtivamente beliscava o calcanhar do mais desatento e o susto, o grito de meu Deus o que é isto? -, era o suficiente para desatarmos numa gargalhada de tirar o fôlego, não sem antes verificarmos o rosto desolado da vítima de nosso deboche.

Certa noite criamos uma artilharia pesada, uma guerrilha com balas de mamonas. Dividindo nosso grupo em tropas rivais, fizemos as trincheiras próximas aos pés de carrapateira, apelidados de arsenal. Atirávamos nos vultos esparsos entre as folhagens, pareciam mover-se em câmera lenta, sutilmente iluminados pelos reflexos dos astros celestes. De repente, ouvimos um insólito zumbido semelhante a um enxame de abelhas. O som estranho partia do cercado das ovelhas, que há pouco comparávamos com um mar lanoso banhado pelos raios lunares. Foi o suficiente para o balir langoroso dos animais tornar-se um inquietante e estrepitoso jogo de patas, talvez pressentindo a aproximação de algo terrível, quem sabe um lobo faminto. Então surgiu o inesperado. O barulho ganhava intensidade, vinha em nossa direção e – meu Deus do céu! – vinha acompanhado por um inexplicável rastro de luz, mal comparando uma aliança fosforescente do tamanho de um prato convencional. Ora rodopiava, ora descrevia uma reta, ou uma elipse, mas, supostamente, não era conduzida por mão humana. Paralisados, assistíamos a tudo sem mover um músculo, agarrando o braço do companheiro mais próximo buscando um socorro providencial. Um cão que parecia dormitar no alpendre do casebre despertou rosnando com ferocidade e disparou rumo à misteriosa luz, mas logo estacou, seus olhos redondos golpeados pela claridade agora ferindo suas pupilas dilatadas, fazendo-o meter o rabo entre as pernas e embrenhar-se nas sombras da noite, ganindo desesperadamente. Um tiro de pólvora ecoou na amplidão e o velho morador assomou numa depressão de areia, vociferando com voz roufenha, abafada pelo forte zumbido. A sinistra luminosidade focou o seu rosto desta vez, emoldurando o desenho de suas faces ondeantes de rugas. Súbito, um grito estarrecedor: o homem se debatia no chão, a luz era uma chama ardente provocando queimaduras em sua pele facial e o pobre coitado correu espavorido, gritando suas dores lancinantes, infiltrando-se no coqueiral, grunhindo como um porco ao lhe cortarem as bolas. O ranger de portas das toscas cabanas vizinhas trouxe novos figurantes para inteirar-se do acontecido. O vozerio daquela gente semidesperta pareceu afugentar o invasor fosforescente e, por instantes, os sons foram baixando o volume, paulatinamente.

Olhávamos a tudo camuflados nos arbustos das carrapateiras e demos conta de que a pavorosa luz desaparecera... temporariamente! Crepitante, ela ressurgiu crestando as folhagens, transformando os ramos em uma névoa fumarenta. Partia agora pra cima de nós e não demoramos em correr a toda rumo ao nascente. Cruzamos todas as elevações arenosas aos tropeços, tropicando aqui e ali, sempre perseguidos pelo facho horripilante e seu zumbido ameaçador.

À medida que fugíamos sensível mudança acontecia nas cores do céu, adquirindo certa palidez. A aragem nos confrontava sem intervalos, enregelando nossos corpos. A luz fantasmagórica rodopiava ora no ar, ora no cimo das dunas, mas a perseguição continuava implacável. Íamos impelidos por uma força indizível, sobrenatural, pois jamais havíamos produzido tamanha velocidade, nem quando uma manada de bois enfurecidos escapou do curral do seu Cordeiro.

Um clarão repentino delineou a linha do horizonte e uma grande extensão de mar surgiu à nossa frente. O declive da última duna fez rolarmos em forma de caracol, os corpos emborcados bamboleando qual um pneu, até esbarrarmos nas águas crespas e espumosas, exaustos, respirando a custos, o coração aos solavancos. Inútil continuarmos a fuga, a redenção seria a única alternativa. Seríamos dizimados pela fúria incandescente, transformados em pó, ao pó voltaríamos. Dispersos nas águas, sepultados nas profundezas abissais do Atlântico. Há um instante em que a entrega total, o desfalecimento por completo, obstruem a razão: raciocinar é não pensar em mais nada, simplesmente deixar acontecer. Vencidos por um fenômeno, não identificado, informe e sem procedência. Adormecer seria um ato de despedir-se solenemente...

Ficamos ali, hibernando por horas a fio, expostos ao sol que irrompia inclemente, tostando nossas peles salgadas e cobertas de algas frescas. As ondas do mar bramindo um pouco mais adiante, expectantes absolutas de todos os acontecimentos, vinham de quando em quando refrescar nossos corpos estendidos na areia úmida, como a língua de uma loba lambendo a sua cria.

Rui Paiva
Enviado por Rui Paiva em 29/10/2014
Código do texto: T5016462
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