477-MANDALAS DE TRICÔ-Memórias de minha mãe

Era tranquila e controlada. Sempre atenta às coisas do lar, metódica, tinha dia e hora para fazer as tarefas, para ouvir a novela da Rádio Nacional, para costurar e para crochetar. Para fazer crochê, reservava as horas da noite, sob um abajur com forte luz.

— Desde que passei a usar óculos, minha vista não é mais a mesma. — Dizia, fazendo graça com a própria deficiência.

Nem por isso Dona Maria deixava de fazer o tricô em linha finíssima, elaborando os mais belos trabalhos dessa quase esquecida arte.

A rapidez com que manipulava a agulha de ponta em pequena fisga, num movimento contínuo de ir e vir, dando laçadas, era incrível. Os dedos indicadores estavam calejados. De ponto em ponto, de laçada em laçada, a tessitura ia sendo construída. Uma verdadeira filigrana de flores, volutas, franjas, cordões de união das diversas partes, tudo surgindo do nada, numa verdadeira mágica de movimentos precisos.

Tudo começava pelo centro, uma minúscula laçada. A linha ia sendo puxada do novelo, também em movimentos precisos, para não embaraçar. Uma, duas, cinco, dez, doze laçadas e eis o núcleo de uma flor. Ao redor do pequeno miolo, as pétalas iam aparecendo. Não havia limite para a habilidade da hábil tricoteira. Flores de três, quatro, cinco ou mais pétalas. Não obedecia às “receitas” que eram apresentadas em revistas ou fornecidas por alguma amiga.

Gostava de trabalhar com a linha branca, muito fina, que apresentava trabalhos mais delicados. Toalhinhas para mesas pequenas, aparadores, encostos de cadeiras; grandes toalhas, centros de mesas de jantar. Colchas para camas. Bicos para toalhas de mão ou de banho, franjas para xales. Golas e punhos delicadíssimos para blusas femininas. Apliques para as mais diversas finalidades. Enfim. dezenas, centenas, (quem sabe, milhares?) de peças foram produzidas por dona Maria, durante sua vida.

As toalhas grandes ou pequenas eram constituídas a partir de uma flor ou um motivo circular, ao qual outras unidades eram acrescentadas, em círculos, entremeadas por outros motivos que simulavam ora folhas, ora desenhos geométricos. Ao final, uma peça única de dezenas de aplicações geometricamente agregadas e de uma beleza sem par.

Com a venda das delicadas peças de crochê ajudava o marido nas despesas da casa, já que era a administradora do dinheiro que entrava na modesta residência. O marido, marceneiro e carpinteiro por profissão, era outro hábil artista: entalhava madeira como ninguém no seu tempo. Mas, como todo artista, era completamente desligado do aspecto financeiro de sua profissão.

— Pedro, você pegou esta mobília por preço muito barato. — Dona Maria estava sempre atenta aos contratos do marido. Era ela quem recebia os pagamentos e fazia todas as compras para a sobrevivência da família e manutenção da casa.

O marido não esquentava a cabeça. Vivia para o trabalho. Passava o dia inteiro na oficina, no fundo do quintal, trabalhando artesanalmente, enfeitando os frontões e portas das peças com delicados entalhes que lhe tomavam as noites de trabalho. Só saia da oficina, nos dias de trabalho, para comprar algum madeiras e material para o uso.

— Maria, me dê duzentos mil réis. Preciso comprar verniz, cola e algumas tábuas.

E lá ia a controlada senhora remexer a pequena caixa de madeira, guardada no fundo do guarda-roupas (depósito em banco, naquela época, só para os ricos, os fazendeiros ou comerciantes), retirar o dinheiro solicitado.

E assim foi a vida de Dona Maria. Sempre alegre, satisfeita, jamais perdia a calma. Era conselheira de outras amigas em situações de perdas e dores. Conversava animadamente com quem estivesse perto, enquanto lançava a agulha, puxava a linha, e tecia as lindas peças de tricô. Constantemente havia alguma sobrinha ou vizinha ao seu lado, aprendendo a tricotar. Era uma professora paciente e orgulhosa em passar a habilidade para as meninas.

Nunca se aborrecia, nem mesmo quando tinha de ir ao grupo escolar, a chamado da professora do filho caçula, Arthur, que não queria estudar. Nas poucas zangas do pai com os filhos, procurava acalmá-lo, sem tirar-lhe a autoridade.

— Calma, Pedro, esfria a cabeça. Depois cê fala com o Arthurzim.

À medida que envelhecia, diminuindo os encargos da família depois que os dois filhos se casaram, mais e mais tempo dedicava ao tricô. Dona Maria produzia muito, além das peças encomendadas. Tinha sempre uma grande quantidade de toalhas de diversos tamanhos, guardadas numa caixa de papelão. Alvas, engomadas, eram vendidas principalmente no final do ano, a algumas conhecidas que vinham de São Paulo ou de outras cidades para passar o Natal em família.

Certa ocasião chegou Edna, sobrinha que residia na América. Chegou, examinou as toalhinhas e comprou todas. Quarenta e sete toalhinhas. Dona Maria fez até um preço especial pela grande aquisição.

— E para o ano, quero outro tanto. — Encomendou Edna.

No Natal do ano seguinte, veio a sobrinha de novo comprar mais peças. Dona Maria já havia feito uma boa quantidade e foram negociadas mais sessenta e duas toalhas pequenas.

— Ainda que mal lhe pergunte, Edna, onde é que você coloca tanta toalhinha na sua casa? — Perguntou a cândida tia.

— Ora, titia, não uso para cobrir móveis, não senhora. Eu as coloco sobre um fundo escuro, de tecido aveludado, e mando fazer quadros. A senhora não imagina como ficam lindas em quadros.

O que Edna fazia com os quadros, ninguém perguntou e ela jamais revelou. Mas era uma destinação completamente inusitada e de certa forma, muito dignificante e valorizadora, da arte de tricotar.

E assim foi. Uma mulher tranquila, feliz até no final de seus dias. Mesmo quando ficou semi-inválida, ainda assim, não dispensava a agulha, a linha e prosseguiu tricotando. Penso que ela entrou para o céu com seus objetos e sua habilidade e por certo está enfeitando com seu trabalho as nuvens e os astros do Universo.

Foi Denise, minha filha, praticante do Zen, conhecedora dos poderes das mandalas para a felicidade, quem me deu uma dica esclarecedora dos efeitos da arte de minha mãe.

— Sabe porque a vovó foi uma mulher tão tranquila e feliz a vida inteira? Ela vivia fazendo mandalas. Mandalas de tricô.

ANTONIO GOBBO

Conto # 477 da Série Milistórias –

Belo Horizonte, 8 de janeiro de 2008

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/10/2014
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