474-O SOLDADO DE CORPO FECHADO-Na revolução de 1932

A Revolução de 1932 durou apenas dois meses, mas gerou muita movimentação de tropas. As forças do Estado de S. Paulo eram constituídas de cerca de 20.000 homens, mal armados, sem treinamento e nenhuma logística. As forças defensoras do Governo Federal, em numero muito maior, cercaram o inimigo (as tropas de S. Paulo) em duas frentes: pelo sul, vindas do Paraná; e pelo norte, avançando a partir do sul de Minas Gerais. Entretanto, estavam em piores condições de combate e de pessoal que os adversários.

Houve adesão de voluntários de ambos os lados. Qualquer cidadão entre 21 e 30 anos, solteiro, podia se alistar como voluntário. Os grandes fazendeiros do sul de Minas apresentaram seus "voluntários”, isto é, pequenos grupos de cinco, oito e até dez empregados nas fazendas, que eram agregados ao efetivo militar em ação, sem nenhum treinamento,

Militão, colono da fazenda do Doutor Emerenciano Barbosa, foi ter com o patrão.

— Patrão, tenho medo dessa coisa de arma de fogo. O sinhor podia me dispensá.

— Qual o quê, Militão. Você é corajoso, valente, vai derrubar muito paulista. Além do mais, ouvi dizer que você tem o corpo-fechado. — Embora nada acreditasse daquela história toda, era o argumento forte para convencer o simplório empregado.

— É verdade, dotôr. Mãe Candunga fez um trabaio nimim, pra mode eu sará da picada de uma cobra, e depois daquilo, fiquei de corpo-fechado. Mais num sei não se na guerra é a mesma coisa.

— Claro que é, Militão. Vai descansado, você vai voltar herói.

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A entrada de Militão na tropa foi feita em caráter de urgência. Os “soldados” já estavam de partida para divisa de Minas com São Paulo. Saíram de manhã, um grupo de trinta combatentes, no qual apenas o sargento, chefe da tropa, era profissional. Armas de fogo: o fuzil do sargento, algumas garruchas, cartucheiras de caça e espingardas de pequeno alcance. Não teriam dez armas de fogo. Os demais trataram de se arranjar como podiam: chuços, lanças com facas e punhais amarrados nas extremidades. Cada qual exercia sua criatividade e imaginação para se armar.

Caminharam cerca de cinco léguas — ou seja, trinta quilômetros, mais ou menos — e chegaram à margem do Rio Grande, que separa os dois estados. Entardecia e os homens estavam cansados e com fome.

— Vamos arranchar. — Ordenou o sargento. — Passaremos a noite aqui. Amanhã atravessaremos o rio.

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Os combatentes repartiram-se em dois grupos, formando dois acampamentos. A turma da qual Militão fazia parte preparou-se para passar a noite debaixo de uma imensa jaqueira. Depois de comerem o farnel que haviam trazido, o sargento determinou que quatro soldados permanecessem acordados, como sentinelas.

— Até duas horas da madrugada, ficam vigiando o acampamento. Depois, acordem Zé Colméia, o Expedito, Ramon e Alaor, para substituir, até amanhecer. Olho vivo, gente. Não vão cochilar nem deixem apagar a fogueira. Qualquer movimento, me acordem.

Noite tranqüila. As sentinelas, embora advertidas pelo sargento, descuidaram-se e cochilavam, encostados em troncos ou sentados sobre cupins.

De repente, um barulho se fez ouvir, em pleno centro do acampamento. PLOFT! Um barulho seco, como uma bola arrebentando-se. As sentinelas se erguem, alertas.

Militão acorda assustado. Sente que seu pé foi atingido por alguma coisa. Grita.

— Fui atingido! Ai...meu pé! Me acudam!

O pessoal, acordado com os gritos e Militão, se põe a correr de um lado para o outro. O sargento aparece, disparando ordens.

— Silêncio! Fiquem quietos! Todos deitados! Apaguem a fogueira!

Militão fica imóvel. Sente uma coisa fria escorrendo pelo pé descalço.

Alaor joga terra sobre a fogueira, apagando-a.

Silêncio profundo e sinistro, por alguns momentos.

Militão passa a mão pelo pé. Sente uma gosma, pensa que é sangue. Geme baixinho.

— Tô ferido. Meu pé...ai...ai.aai.

Arrastando-se, o sargento se aproxima do “soldado”, que treme, apavorado.

— Quieto, homem! Cadê a coragem! Vamos, seja um bravo!

Vê apenas o branco dos olhos do negro. Passando a mão pelo corpo, falando em tom manso, para acalmá-lo.

— Onde é que ta doendo? Onde foi atingido?

— No pé. Tá correndo sangue. Ai, minha Virge Maria, me acode! Vou morrê!

As mãos do sargento chegam aos pés de Militão. Sente uma umidade, algo melequento. Ao mesmo tempo, tira dentre os dedos do pé atingido, uma peça do tamanho de uma bala. Úmida, viscosa, mais parece uma amêndoa. Leva o pequeno objeto ao nariz, cheira e constata.

— Mas...é uma jaca. Soldado Militão, você foi atingido por uma JACA!

Levantando-se, dirige-se aos homens que permanecem hirtos, deitados no chão.

— Tudo bem, soldados! Podem voltar a dormir.

E dirigindo-se ao Militão, em tom de reprimenda:

— Ô soldado Militão, você não falou que tem o corpo fechado, que nada atinge você?

E Militão, ainda tremendo, mas agora de raiva, gagueja ao se explicar:

— É, sargento...Tenho corpo fechado, sim, sinhor... Já passei por muito perigo... Mais agora eu tava disprivinidu, drumindo discarso e cum os pé pra fora do cubertô. Adispois, cobra é uma coisa, tiro é outra coisa. E jaca é jaca!

ANTÔNIO GOBBO

Conto # 474 da série Milistórias - 800 palavras

S.Sebastião do Paraíso, 16 de janeiro de 2008-

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/10/2014
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