465-ENCONTRO com o escritor Manoel Lobato
Dedicado ao meu amigo querido MANOEL LOBATO
Encontraram-se no coquetel de lançamento do livro de Laura Medioli. Viram-se de longe, entre a multidão de leitores e fãs da escritora. Acenos trocados e eis os dois se abraçando com saudade.
— Então, Manoel! Que prazer ver você aqui.
— Pois é, Antônio. Que surpresa! Como está?
— Estou bem. Um pouco desajustado no meio deste povaréu. Quanta gente, hein?
— A escritora é meritória. Escreve bem, tem sua coluna semanal no jornal. Faz sucesso. Mas, me diga aí; há quanto tempo! Só o reconheci pelos retratos nos seus livros.
— Ah, Manoel, nem me diga! Isso é invenção do diagramador dos livros. Mas, pra ser franco, também não o reconheceria se não visse sua fachada todos os dias, na sua coluna do jornal.
— Pois é. Também por exigência do pessoal do jornal. Por mim... Como sabe, sou avesso a isso. Procuro me esconder detrás desta vetusta barba.
— Que coisa, hein, a gente se encontrar aqui depois de tantos anos. Acho que faz quase cinqüenta anos que a gente se separou, no Rio. Foi em ’58, ’59...?
— Eu quase não vim. Não gosto de sair à noite.
— Eu também. A idade vai impondo certas restrições e a gente vai aceitando.
— Sabe, recebi seu livro mais recente. Gostei. O primeiro conto, que é também o título do livro, “Inimigos não mandam Flores” me agradou bastante. Aquela história da Ana Ariel é patética e pungente. Sua capacidade de dar nomes curiosos aos personagens é de muita criatividade. A trama das gêmeas, embora com base em anedota, está bem apresentada.
— Ah, eu gosto de adaptar casos e anedotas, recontando-os no meu estilo. Muita notícia de jornal eu transformo em conto ou crônica. Não sei bem qual a diferença.
— Vejo que você mesmo está editando seus livros.
— É, ainda não encontrei uma editora que se aventurasse. Então, como tenho urgência em divulgar meus contos, edito uma seleção por ano. Este mais recente é o sétimo.
— Surpreende-me o êxito de sua empreitada. Sei como é difícil. Já fiz isso há muitos anos atrás, editando meu livro “Contos de Agora”. Em 1970. Mandei mais de trezentos exemplares para jornalistas, críticos, escritores, esses caras. Apenas três, só três destinatários me mandaram bilhetes, dizendo que haviam recebido os exemplares.
— Não estou nem aí para críticos e jornalistas. Pra mim, os críticos são todos uns frustrados, que não conseguiram se firmar como autores (ou pintores, ou cineastas, ou teatrólogos, ou em qualquer arte) e então, se arvoram em críticos.
— É, mas eles existem. E fazem diferença.
— Sim. Eu mesmo costumo ler as críticas. Mas sabe pra quê? Pra ir justamente atrás dos livros, peças de teatro, filmes e espetáculos que são malhados pelos críticos. Esses são os melhores.
— Mas, me conta aí, como conseguiu sobreviver por tantos anos?
— Manoel, nem lhe digo. Ao contrário de você, não consegui me formar, não tive como freqüentar a faculdade. Fui trabalhar no interior. Me formei na universidade da vida.
— Me lembro quando estávamos no Rio. Eu trabalhava no jornal, mas tinha a firme convicção de me formar em farmácia. Você queria ser dentista.
— É, queria... Ficou no querer. Porém, trabalhei em bancos, e fiz muitas outras coisas. Fui jornalista (sem querer, querendo), gerente de cooperativa de consumo. Fui sitiante, vendi até galinha em feira. Plantei fumo, tive plantação de café. Agora, depois de velho, é que desembestei para as artes. Pintei, fiz bons quadros, organizei uma gibiteca, trabalhei em teatro amador, e comecei escrever. E você?
— Bom, se você lê minhas crônicas no jornal, como disse, sabe que me formei em farmácia, voltei para o interior, onde me estabeleci. Norte de Minas, Espírito Santo, zona do contestado entre estes dois estados. Não foi uma vida animada, mas sobrevivi. Porém, nunca deixei de escrever...
— Sei, sei. Já li quase todos, acho que todos livros que você escreveu. Agora, conversando com você, vou conferir.
— Quem é picado pelo vírus da escrevinhação, jamais se livra dele.
— Gosto muito de seus escritos, você e eu temos as mesmas origens e falamos a mesma língua. Nós escrevemos de pés no chão e a caminho da roça.
— Interessante é que, embora sejamos os dois mineiros, as nossas diferenças de origem são enormes.
— É verdade. Você, do norte, de família humilde, com dificuldade para estudar. Eu, do sul, também de família de poucos recursos, não pude nem estudar. Sabe, no nosso tempo, na nossa infância e meninice, existia uma classe social que desapareceu. Eram a classe das nossas, as famílias “remediadas’. Eram assim nossas famílias. Não eram pobres, mas vivia-se da mão para a boca, isto é, nossos pais ganhavam o suficiente apenas para a sobrevivência. Com muita dificuldade mas tudo com muita dignidade. As mães, quando podiam, ajudavam com serviços que podiam fazer.
— Estudei muito para sair daquela situação. Freqüentei um colégio presbiteriano, como interno, foi duro de roer.
— Eu também estive em colégio religioso. De irmãos Lassalistas. Eram rigorosos. Mas valeu, não valeu?
— Claro. As dificuldades da vida é que forjam os heróis.
— E cá estamos nós, dois heróis. Você mais do que eu, pois já viveu mais, está na minha frente uma década.
— É, mas a vida já está cobrando todos esse “heroísmo”. Minha vista está fraca, não caminho com muita desenvoltura e sou perseguido pelas lembranças.
— Ora, Manoel, lembranças...quem não as tem? Só os loucos. Assim mesmo, eles têm, sim, lembranças distorcidas, grotescas, surrealistas. Gosto de lembranças. Não gosto é de saudade.
— Uso minhas lembranças para escrever.
— Excelente terapia! Pode estar certo que, escrevendo, iremos muito mais à frente.
— Os deuses o ouçam. Mas, olhe, tenho de ir.
— Por mim, ficaríamos aqui conversando a noite inteira.
As palavras de despedidas são embaraçadas pela emoção. Lágrimas furtivas aparecem nos olhos de ambos. Separam-se e cada um segue em direções opostas.
Nota: o encontro se deu em 10.11.2005
ANTÔNIO GOBBO
Belo Horizonte, 23 de novembro de 2007
Conto # 467 da série Milistórias