Um passeio com Papai

Ouvi meu pai no telefone, falando alto, alto demais, estrondosamente alto, ultrapassando os níveis de decibéis de qualquer barulho já conhecido "Sim! Já dou uma passada ai! Não tem problema em ser cheque...". Deduzi que ele falava no telefone porque estávamos sozinhos em casa. Minha avó estava num hospital com tubos nas narinas e respirando por aparelhos; meus irmãos e minha madrasta haviam viajado.

Eu havia acabado de acordar e sentia a fome do dia anterior latejando as paredes do meu estomago. Na cozinha não havia nada para comer, além de um pão fabricado no século 18 e uma maçã mordida, pela metade. A outra metade estava podre.

Ouvi os passos pesados se aproximando do meu quarto, assim como senti o cheiro habitual de um homem numa ressaca das grandes.

- Ronaldo, acorde! Coloque o uniforme. Vamos almoçar fora! Depois te levo pra escola.

Olhei para meus pés, na semi escuridão do quarto, ainda deitado, e respondi

- Hoje eu não tenho aula.

Ele me olhou, surpreso, agressivamente surpreso:

- Por que? Ele disse, como alguém que encontra deus e aponta o dedo indicador para a vida, e pergunta, estupefato, "por quê?"

- Porque hoje tem gincana e ao invés de participar das atividades preferi resumir um livro, conforme a orientadora recomendou.

- Que vergonha. O Tafarel (meu irmão mais velho que ele amava, desde que ficasse longe)sempre participava das gincanas. Me custa crer que você é meu filho. Ele assou o nariz com as mãos, produzindo um ruído semelhante a um tiranossauro rex e disse:

- Calce seus chinelos e vamos comer alguma coisa. Não garanto que te trago do centro para casa. Seja rápido. Faltar gincana, para ler... o que fiz para ter um filho assim...,disse ele, se arrastando para longe.

Entrei no carro, depois de abrir o portão da garagem sem teto.

- Preciso colocar um som de fita nesse carro, ele disse, pensativo, ligando o carro.

- Fita de música?

-NÃO, FITA ADESIVA. Largue mão de me distrair e leia seu gibi.

Continuou dirigindo como uma criança num carrinho de bate-bate e eu fiquei calado, com o rosto vermelho, pronto pra chorar como uma criança. Bem, eu era uma criança. Mas não era possível chorar perto de alguém tão perfeito como ele, sempre com uma resposta no abismo da língua. Abri meu gibi do Pateta e dei início. Era uma história na qual o Pateta não tinha dinheiro para dar um presente para o Max e...

-Não era pra você ler um livro? Por que está lendo um gibi, se exigiram um livro?

- Gibi é literatura, quadrinhos. Um velho disse isso na televisão ontem de noite. E sabe, pai...

- CALA A BOCA! Já disse para não me distrair.

Estávamos num sinal, parados. Olhou pelo retrovisor, deu um soco no painel e assou o nariz igual a um elefante novamente, aí disse:

- Desde que não me chamem naquela merda de escola porque você andou fazendo cagada, tudo bem.

O cheiro de combustível contaminava o velho automóvel. Um TL podia ser bonito, lindo, mesmo velho e descascado. Mas as aparências enganam. São os carros como as mulheres, aprendi anos mais tarde.

-É aqui que vamos almoçar, disse meu pai, parando o carro.Fique no carro e tente não causar problemas até eu voltar.

Ele saiu do carro e entrou numa loja do outro lado da rua. Larguei o gibi do Pateta e prestei atenção no meu velho. Ele abriu a boca O homem do outro lado do balcão também. E se meu pai costumava falar mais alto do que cem amplificadores Marshall juntos, falou ainda mais alto. Ouvi ele dizer( detalhe, com as portas e janelas do carro fechadas) "Quero o cheque, foda-se essa greve...", e o velho alteou a voz de trompete empoeirado e disse "Lamento, eu avisei que...".

Voltei para o gibi. O Pateta, depois de vasculhar o sofá em busca de moedas, sem resultado, estava batendo na porta do Bafo Honesto para pedir dinheiro e...

Ele bateu a porta com estrondo violento, satânico, colérico, desalmado, desnecessário. Olhei para o o meu lado da rua e homens usando ternos elegantes conversavam e fumavam, sorrindo.

E veio a velha e conhecida dúvida infantil:

- Pai, por que você não usa terno?

Ele me olhou, arqueou as sobrancelhas e respondeu, com uma doçura demoníaca, se é que me faço entender...

-Porque eu não sou rico. Nunca vou ser. Nem você. Você vai dirigir um carro velho como o meu. E vai suar duro pra comprar um. E eu vou vender esse carro e voltar a andar de bicicleta. Se eu não tacar fogo nele. Com você dentro dele, de preferência. Agora, coloque seu cinto, não tenho habilitação e você ainda age igual a um imbecil!... maldita hora em que gozei naquela vagabunda..., disse ele, tentando ligar o carro.

Coloquei o cinto e ele deu partida. Porém, o carro não pegou.

- Empurre.

Saí do carro, velozmente, e comecei a empurrá-lo. Ele gritou, lá do volante "Mais força!!!"

Tentei e nada.

Ficamos nessa por dez minutos, equivalentes a dez mil anos.

- Chega, ele ordenou alto e desanimado. Vou chamar um guincho. Tchau. Vá para casa.

Olhei para seu rosto prostrado, através do retrovisor. Ele estava péssimo. Dei um passo na direção contrária, na intenção de rumar para nossa velha e solitária casa. Mas retornei.

- Pai, estou com muita fome.

-Ah, é?!?

- Aham.

- Venha até aqui, ele disse, com seu sorriso diabólico novamente, abrindo a porta do carro. Parei zonzo, com meus chinelos de borracha diante da porta aberta.

Ele disse, conservando o sorriso:

- Está de barriga vazia, filhinho?

-Sim, eu disse, quase chorando de novo. Mas não verteu uma única lágrima dos meus lindos olhos negros.

- Então, TOMA!- e me deu um soco certeiro na boca do estomago.

- Agora não está de barriga vazia! Ela está cheia de dor! "Se suma"!!!! Gritou, triunfante como Deus ao vencer o Diabo ou vice-versa.

Ele fechou a porta e eu fiquei caído, sem sentidos. Levantei, tonto, sem nada enxergar direito, sem convicção de qualquer imagens, e de alguma forma miraculosa consegui andar até nossa casa.

O gibi do Pateta ficou no carro. Ele tacou fogo no carro no mesmo dia, logo que anoiteceu, bêbado, enfurecido. Não teve problemas com a polícia, pois era "faixa" dos policias da pequena cidade que foi palco da minha infância e adolescência.

Cheguei em casa depois de caminhar quatro quilômetros. Comi a metade podre da maçã. Não havia nada para ler. Deitei na cama escura. Senti vontade de chorar.

E finalmente, chorei.

R A Ribeiro
Enviado por R A Ribeiro em 25/10/2014
Reeditado em 22/09/2015
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